Apesar de promover o turismo sustentável, privatização do Jalapão oferece danos ambientais imprevisíveis

Tendo como objetivo a criação do Fundo Nacional de Apoio à Região do Jalapão, desde 2015 o PL 1345/15 passou por sucessivos arquivamentos

O Brasil tem aproximadamente 450 áreas de conservação encaradas como parques estaduais. Pela Lei 9.985/2000, todos os recursos naturais neles presentes só podem ser usados em processos científicos ou para fins de turismo ecológico. E o Parque Estadual do Jalapão, localizado ao leste do estado do Tocantins e com extensão superior a 1.500 m², é alvo de uma lei que visa o incentivo às atividades turísticas.

Sancionada em 25 de agosto de 2021 pelo governador do estado de Tocantis, Mauro Carlesse (PSL-TO), a Lei 3.816 prevê a entrega do parque à concessão privada. Pelos contratos firmados, a concessionária que administrar o parque fará investimentos em infraestrutura, acessibilidade, comodidade, conservação, hotelaria, atrativos e equipamentos turísticos. Além desses serviços, a realização de atividades voltadas ao turismo ecológico também será permitida.

Foto: reprodução da internetEssa preocupação do turismo para com o meio ambiente ganhou mais destaque entre os anos 1980 e 2000. Foi nesse período que houve uma maior conscientização sobre as questões ecológicas, algo que, em virtude dos custos das práticas de responsabilidade ambiental, atingiu o setor turístico de maneira segmentada.

De acordo com a professora de turismo da USP Mariana Aldrigui, nos anos 2000, especialmente a partir de 2010, foi quando, além da relação com o meio ambiente, as empresas passaram a ser avaliadas também pelos seus compromissos inerentes às questões sociais.

Segundo ela, como a adoção de práticas sustentáveis tem se tornado uma marca de caráter das pessoas, é compreensível que ela apareça também no turismo. “No turismo, especialmente, sempre chamou a atenção os rastros deixados por turistas, em geral lixo, alguma desordem, alterações que, em larga escala, prejudicaram vários destinos”, comenta. “Quando, há cerca de 40, 50 anos - especialmente na Europa e nos destinos de verão visitados por europeus - se prestou atenção a este efeito, começou o movimento para que as práticas fossem mais sustentáveis, pois preservar o destino é preservar a fonte de renda das comunidades e dos operadores do setor”, explica.

Porém, com a chegada da pandemia, outra mudança no setor turístico tem sido observada, que é o estímulo ao turismo interno. Por conta do conflito global travado contra a Covid-19, sua consequente diminuição de possibilidades de viagens ao exterior e o maior número de informações divulgadas sobre o Brasil nas redes sociais, os brasileiros passaram a optar por conhecer as oportunidades que o país tem a oferecer. Nessas condições, as áreas preservadas são locais com atrativos turísticos que possuem possibilidades de sofrer aumento no número de visitantes.

Foto: um dos principais locais procurados para realização do turismo ecológico, a Chapada dos Veadeiros, em Goiás (GO), foi entregue à iniciativa privada em dezembro de 2018 após a assinatura do contrato de concessão pelo então Ministro do Meio Ambiente, Edson Duarte - reprodução da internet
Nesse contexto, o PL 1345/15, feito pelo Deputado Carlos Henrique Gaguim (PODE-TO), tinha como um de seus preceitos promover, no Parque Estadual do Jalapão, o turismo sustentável por meio da preservação do ecossistema local e educação ambiental.

Segundo a professora de turismo da USP Mariana Aldrigui, o benefício do turismo adequadamente gerenciado e seguindo práticas sustentáveis é, ao mesmo tempo, a percepção in loco da importância da preservação e também a entrada de receitas para que as ações de preservação, pesquisa, valorização da cultura local e geração de empregos para a comunidade possam acontecer corretamente. “A ressalva aqui é que a administração precisa contar com estruturas de governança capazes de garantir a gestão responsável”, pondera.

Além da intenção de estimular o turismo sustentável, o que levaria a uma intensificação do turismo interno e uma consequente injeção de ânimo na economia do estado do Tocantins, o PL 1345/15 tinha como objetivo a criação do Fundo Nacional de Apoio à Região do Jalapão.

A nova instituição tinha como finalidade a preservação da cultura local, a qualificação de trabalhadores, o estímulo à produção, bem como a criação de cooperativas. Tratava-se da implantação de um modelo de cogestão participativa, na qual a cooperação entre os moradores da região e entidades públicas e privadas se daria de modo democrático, com vistas a um bem maior: a preservação ambiental.

Foto: o gato-maracajá é uma das 16 espécies de mamíferos que vive no Jalapão - Adriano GambariniNo caso do Parque Estadual do Jalapão, assim como qualquer parque público, recursos financeiros são necessários para que a conservação seja realizada. Porém, este é um assunto que não tem sido prioridade dos governos estaduais e federal, o que justifica os baixos valores repassados para essa iniciativa.

Segundo o professor titular do departamento de ciências biológicas da ESALQ/USP Ricardo Ribeiro Rodrigues, para conservar a biodiversidade e a diversidade cultural é preciso recurso e conhecimento, duas coisas mal usadas ou ignoradas pelo governo federal. “Uma privatização do turismo inteligente, com um excelente Plano de Manejo construído de forma participativa, que preveja áreas de visitação e de manejo da biodiversidade pela comunidade tradicional, além de recursos do turismo para pesquisa e manutenção adequada do parque, pode ser uma excelente forma de transpor essa não atuação do governo federal”, avalia Rodrigues.

Um cenário harmônico para ambas as partes parece estar distante de uma real concretização. Afinal, de acordo com o PhD em política comparada pela Universidade de Bamberg, na Alemanha, Orlando Lyra de Carvalho Junior, desde o parecer pela aprovação do PL 1345/15, feito pela Dep. Simone Morgado (PMDB-PA) em 12 de agosto de 2015, até seu arquivamento pela Mesa Diretora, em 31 de janeiro de 2019, e seu posterior desarquivamento em 20 de fevereiro daquele mesmo ano, o projeto de lei parece ter sofrido sucessivas sabotagens que culminaram com a abrupta renúncia da relatoria na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), por parte do Dep. Carlos Jordy (PSL-RJ) no dia 10 de junho de 2021, apenas dois meses antes da aprovação do projeto de privatização pelo governador Mauro Carlesse (PSL-TO).

No dizer do ex-Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, esses acontecimentos se inserem num contexto de “deixar a boiada passar”. “A manutenção tanto do Parque Estadual do Jalapão quanto de outras áreas de preservação ambiental seria perfeitamente possível com a aprovação do PL do Dep. Carlos Henrique Gaguim (PODE-TO) e sem as aventuras de processos de privatização/concessão, tipo ‘cheque em branco’, passados a interesses privados, cujo principal objetivo é o lucro”, contesta Carvalho Junior.

Esse cenário de disputa reflete no modelo de privatização do Parque Estadual do Jalapão. Aprovado pela Assembleia Legislativa do Tocantins (Aleto) e sancionado pelo governador Mauro Carlesse (PSL-TO) na Lei 3.816, ele é caracterizado pela ausência de diálogo com os quilombolas e moradores da região, que, ainda segundo Carvalho Junior, serão os primeiros afetados pela nova lei.

Foto: a Comunidade Barra do Aroeira é uma das sete sociedades quilombolas que vivem no Parque Estadual do Jalapão - reprodução da internet
Isso é o que também acredita a cientista social Janie Pacheco. Segundo ela, as comunidades quilombolas, assim como outras comunidades tradicionais, têm modos de vida consolidados, além de rotinas de trabalho, sociabilidades, rituais e relação com os elementos naturais assentados sob uma lógica que visa otimizar os recursos da unidade de conservação. “As lógicas dos quilombolas e dos agentes defensores dos interesses privatistas sobre como lidar com a natureza são distintas e forçosamente opostas”, salienta. “Portanto, vejo que tais iniciativas de privatização frequentemente desprezam a lógica e o conhecimento prático das comunidades locais no que tange a utilização dos recursos naturais em suas vidas cotidianas”, critica.

Essas interpretações são fomentadas a partir do não detalhamento das obrigações do futuro parceiro privado ou o prazo de vigência de eventuais parcerias na administração do Parque Estadual do Jalapão. “Trata-se de um verdadeiro ‘cheque em branco’ dado ao investidor privado, cujo objetivo central é o lucro e cujos impactos ambientais são imprevisíveis”, alerta o PhD em política comparada pela Universidade de Bamberg, na Alemanha, Orlando Lyra de Carvalho Junior.