Puro coração e sentimento

Desde o começo você foi tema de discussão. Ter ou não ter? Onde vai dormir? Quem vai cuidar? Tem dinheiro suficiente? Existe a possibilidade da partilha de afeto? Qual nome será dado? Tudo isso foi questionado. E como o amor da família estava no talo, a decisão, apesar de não unânime, foi de te trazer para viver conosco.

Foi um domingo de tarde que você andou pela primeira vez no chão frio da sala de estar. Amedrontada como era, buscava-nos em cantos da casa que nem sabíamos ser capaz de caber uma alma viva. Mas em verdade, você dava seu jeito e entrava em qualquer lugar apenas para se esconder da gente. Sua primeira noite foi um caos. Não aceitou a cama e a anfitriã da casa, apesar de meiga e tranquila, não te aceitou de imediato, colocando medo e temor em todos que na casa estavam.

Ao dormir, os olhos de um de seus tutores não sossegou por completo. Cada barulho suspeito já era motivo de ficar alerta e pronto para te acudir. De fato foi preciso intervir uma vez, pois sua integridade estava, entre mil aspas, ameaçada. O resultado foi te colocar em outro lugar, seguro, porém, solitário. O resto da noite foi terrível. Você chorou muito e seu choro me causava tanta comoção que minha vontade era passar a noite ao seu lado para te acalmar, mas por recomendações superiores, essa não era uma boa ideia.

Demorou para você enfim se soltar. Foi só no terceiro dia que relaxou por completo e começou a aceitar brincadeiras e afagos. No quarto dia todos da casa já te conheciam de todas as maneiras, pois você já estava totalmente solta e semi-encaixada na rotina familiar. Seu divertimento até começou a ficar mais enérgico, correndo e mordendo as pessoas que te cercavam.

Ainda assim, dúvidas e mais dúvidas sobre sua permanência na casa eram frequentes, Ainda na primeira noite, houve choro de desespero e dúvida por parte de seus tutores. Mas com o passar do tempo, acreditava-se que esse sentimento pudesse mudar.

Respondendo pelo nome, você enfim era você. Solta, brincalhona e até, de certa forma, malcriada. Mas de fato era algo de se esperar, afinal, você era bebê ainda. Mesmo sabendo disso, a anfitriã não te aceitou, causando maior temor entre os donos da casa.

Enfim, a decisão foi tomada. Para o bem de todos, era preciso que encontrássemos um novo lar para que você pudesse viver, crescer e brincar tranquila. Sem medo. E olha que não demorou nem três horas para que uma família interessada aparecesse e viesse te buscar.

Até o momento de sua partida eu estava em uma dicotomia sentimental. Estava tomando gosto e me acostumando com sua presença e peripécias infanto-juvenis. Mas sua ida era a melhor coisa a se fazer de fato.

Na noite de sua partida, uma onda avassaladora de tristeza, melancolia e culpa atingiu minha intimidade. Chorei por você. Chorei por mim. Chorei pelas minhas atitudes e vontades incompreendidas nem por mim mesmo. Me impressiona, por sinal, não estar chorando enquanto escrevo, mas talvez o poço de água lacrimal tenha secado de tanto utilizado horas atrás.

Em verdade, seu novo lar te dará mais do que podíamos te entregar. Te dará espaço irrestrito e amor incondicional e cuidados apropriados.

Queria te pedir desculpas por tudo isso. Desculpa por te tirar do lar e ficar tão pouco com você para então te entregar a outras pessoas. Desculpe pelo meu jeito bruto, seco e até amedrontado. A verdade desse blend sentimental é que não queria, internamente, gostar de você. Mas já era tarde.

Em apenas uma semana você simplesmente mudou a rotina da casa. Entregou alegria e raiva ao mesmo tempo; amor e compaixão; Medo e alívio. Você fez me conhecer mais e entender mais sobre meu íntimo.

A escrita para mim sempre foi uma terapia. Consigo me expressar muito melhor pelas letras do que por palavras, apesar de ser uma pessoa extremamente transparente quanto aos sentimentos. Por isso escrevo para você e te peço perdão.

Para mim, independente de onde esteja, você será sempre recordada com carinho. Seja muito feliz!