As quatro estações de João Gilberto

Peço desculpa aos leitores que esperavam uma crônica instantânea sobre a morte de João Gilberto. Peço também para aqueles que esperavam uma exaltação ao morto com velhos clichês de sempre, como “Chega de Saudade é o melhor disco da Bossa Nova” (com muita controvérsia) ou “O violão do João moldou a Bossa Nova”. Isso tudo é verdade, mas também isso tudo todo mundo diz. Por isso quero ser diferente e dizer que a obra de João Gilberto é como as quatro estações.

Sem querer estabelecer nenhuma relação com Antônio Vivaldi, em cada álbum de João é possível ver, mesmo que minimamente, marcas das estações do ano seja por sua sonoridade, pelo momento em que foi lançado, ou mesmo por quem os produziu. João Gilberto em si é capaz de nos provocar diferentes sensações e sentimentos e, em sua obra, tirando alguma coletânea ou lançamento ao vivo, é totalmente irretocável, seja pelo som, pelas músicas ou pela sua produção. João procurou a perfeição e foi quem mais perto dela chegou. Vamos aos discos.

Primavera: Chega de Saudade (Odeon, 1959) 




É impossível deixar de começar pelo começo, e Chega de Saudade tem tudo a ver com a primavera. As flores da Bossa Nova estavam desabrochando e esse álbum foi seu girassol. Produzido por Antônio Carlos Jobim e Aloysio de Oliveira, foi responsável por trazer grandes compositores, como o próprio Tom na faixa título em parceria com Vinícius de Moraes e também em Brigas Nunca Mais. Em parceria com Newton Mendonça compôs o que muitos dizem ser um dos “hinos da Bossa Nova”, que é Desafinado. Também temos Carlos Lyra em Maria Ninguém e, em parceria com Ronaldo Bôscoli, temos Saudade Fez um Samba e Lobo Bobo. E por último o que seria uma marca registrada de João Gilberto, que é Dorival Caymmi estar presente na faixa Rosa Morena desse álbum.

É impossível não se associar Chega de Saudade à inovação com relação a tudo que se fazia na época. Por essa razão, esta é a primavera de João Gilberto, pois ali estava começando a nascer um novo som, novos compositores e um novo ritmo. Como recomendação principal deste álbum, deixo as faixas Hô-Bá-Lá-Lá e Rosa Morena. A primeira é uma composição de João que serve como uma impressão e um esboço de tudo o que se sucedeu. A segunda se trata de uma grande interpretação de senão o melhor intérprete de Dorival Caymmi, a faixa mais interessante deste álbum por conta da a leveza e do violão de João. Não há explicação, apenas ouçam.

Verão: Getz/Gilberto (Verve Records, 1964) 




Nada poderia definir melhor o verão como esse álbum de 1964.A bossa nova se torna cada vez mais popular dentre os Jazzistas americanos e, após uma série de eventos, dentre eles o concerto no Carnegie Hall, fizeram com que a Bossa Nova ganhasse cada vez mais força. Neste concerto, os principais destaques foram para João Gilberto, Tom Jobim e Sérgio Mendes. E sendo um dos embaixadores da Bossa Nova, Stan Getz tratou logo de gravar um álbum com dois dos maiores expoentes do gênero. Neste álbum todo o calor do Brasil parecia invadir os Estados Unidos.

Talvez para dar uma ideia da magnitude podemos dizer que Garota de Ipanema, assim como Corcovado, ganharam suas versões definitivas neste álbum na voz de Astrud Gilberto (Pelo menos no mercado americano). Além de ter simplesmente ganhado Grammy de Melhor Álbum do ano de 1965, este disco foi o responsável pelo sol brasileiro brilhar na terra do Tio Sam. Os grandes destaques para este álbum são Doralice, de Dorival e O Grande Amor, e Tom e Vinícius.a A primeira, a meu ver, é a melhor música do disco, na qual todos os músicos parecem estar bem à vontade com uma sonoridade que lembra brevemente o Bebop. No entanto, com o predomínio do samba, Getz consegue dar uma nova roupagem para Doralice. Já em O grande amor, podemos notar elementos mais Jazzísticos a começar pelos vocais de João, que lembram muito Chet Baker. Nesta canção, todos os instrumentos se entrelaçam muito bem. Por fim, este é o verão na terra do Tio Sam.

Outono: Amoroso (Warner Bros,1977) 




A Bossa Nova já era uma realidade ultrapassada, porém, neste álbum podemos ver uma repaginada. Arranjado por Claus Ogerman, o que gerou muito desconforto para João Gilberto, o qual se queixava dos seus exageros nos arranjos. De certa forma, João tinha razão. Aqui parece que a orquestra ganha mais destaque do que qualquer outra coisa e os arranjos aparentemente passam do ponto, uma vez que o violão perde espaço. Mas isso não diminui esse disco. Muito pelo contrário. Amoroso é, para muitos fãs, um dos melhores trabalhos de João. Talvez porque se fizesse necessário uma mudança na sonoridade.

Ainda assim as folhas haviam caído e a euforia e o calor passado de um vez. Assim como Tom em seus álbuns anteriores, João se reinventa dentro da Bossa Nova (embora Tom tenha seguido um caminho flertando com a música erudita). Por fim, como prova de que esse é um grande álbum, Wonderful, a primeira faixa, apresenta todas as intenções que irão vir adiante. Esse é um álbum que mais que qualquer outro deve ser sentido e apreciado.

Inverno: João (Universal, 1991)




Nesse tempo já se falava “no tempo da Bossa Nova”. Ela que esquentou os verões americanos, agora congelava no inverno, e de certa forma este é um álbum que simboliza bem esse esquecimento, uma vez que é muito pouco lembrado dentro da sua discografia. Porém, ao contrário de Amoroso, possui uma orquestração um pouco mais discreta. Fora isso, assim como seu antecessor ele também possui músicas internacionais, além de sambas como Ave Maria do Morro (Herivelto Martins) e Palpite Infeliz (Noel Rosa).

Isso tudo mostra que apesar de fria a bossa ainda continua com grande qualidade e isso se mostra na faixa Sampa (Caetano Veloso). Talvez essa seja a melhor regravação para esta música. Em qualquer lugar do mundo somos transportados para São Paulo e ainda vale destacar como os arranjos estão de acordo com o violão. Já a parte vocal faz da composição a melhor música desta segunda fase do João Gilberto. Faça um favor a si mesmo: No final do dia, pegue uma taça de vinho ou uma xícara de chá e ouça Sampa com João Gilberto.

Por fim, depois deste breve passeio só podemos sentir muita saudade. Como disse o jornalista Luiz Felipe Carneiro “Era bom estar no mesmo mundo que João Gilberto”, e melhor ainda é poder celebrar sua obra e saber que ela é imortal.