O ceticismo de uma pessoa sensata

Ele é auditor. Mexe e lida com questões de saúde e segurança na área alimentar. Pega avião e Uber toda a semana para seu deslocamento casa-aeroporto-hotel-empresa e vice-versa. Com a imagem de um homem sensato, que reflete e ouve os demais, algo que de certa forma é até exigido para os serviços que presta, ele presa para que as pessoas imersas no seu núcleo familiar mantenham o máximo de cuidado para que não adoeçam de forma alguma.

Logo em janeiro, quando se começou a ouvir falar sobre o Coronavírus, o homem já dizia à sua filha para tomar cuidado, lavar as mãos sempre e ficar de olho na saúde da neta. O mesmo passava para o resto de sua família, pois queria todos bem a qualquer custo. Dizia, portanto, que prevenção nunca é demais.

Dois meses e meio depois, aquele alerta tomou força. O Coronavírus agora é uma realidade no país em que vive, e no resto do mundo se tornando uma pandemia. Apesar de morar no interior do estado de São Paulo, ele continuou sua rotina normal de trabalho, pegando avião e Uber e mantendo contato com diferentes pessoas. Ao mesmo tempo, sua mulher e seus filhos passaram a notar a seriedade da situação e a redobrar os cuidados.

No final de semana que antecedeu o boom de cancelamento das atividades culturais, econômicas e educacionais no país como ato de prevenção a um novo tipo de doença proveniente do Coronavírus, o Covid-19, o filho do homem retornou para casa após uma semana de prestação de serviços voluntários em São Paulo (SP).

Ao chegar na cidade de sua casa, o garoto foi apanhado pelo homem e levado para comer fora e se encontrar com sua mãe, avó e tia. No local, a conversa não podia ser outra. O Coronavírus tinha virado pauta até mesmo nas conversas dos bares mais fuleiros. Porém, o homem defendia veementemente que aquilo não se passava de uma gripe qualquer e que bastava tomar os cuidados higiênicos padrões para se prevenir contra o vírus forasteiro.

Ao voltar ao trabalho, o homem fica com febre e resfriado logo que retorna ao hotel depois de um dia de serviço. Ao ligar para sua mulher em chamada de vídeo, foi possível notar o rosto e o olhar abalados do homem. Defendendo que se tratava de uma gripe qualquer, ele logo foi repreendido e obrigado a tirar dúvidas sobre seu estado de saúde com um médico da família.

Como resposta, ele retornou para casa, mas teve de se submeter ao isolamento em um dos cômodos da residência até que se comprovasse se tratar realmente de uma gripe comum ou que se confirmasse a contração do Coronavírus. O álcool líquido virou aliado indispensável de qualquer atividade daquela família. As máscaras ficam agora penduradas no pescoço.

A rotina mudou. Tudo o que o homem toca deve ser imediatamente higienizado com álcool. Comer, assistir televisão, ler. Tudo deve ser feito em separado do resto da família. Vivendo praticamente em um quarto, ele agora se vê trabalhando home-office, mas sem poder se relacionar diretamente.

Enquanto sua mulher e filho levam uma rotina semi-natural, o homem se vê isolado dentro do seu próprio lar. Seus passos têm a atmosfera de vultos, sua respiração algo quase transcendental. Sua voz se ouve de longe falando com funcionários das empresas que presta serviço. Mas às 17h, seu timbre é calado.

Olhar para sua mulher e filho é permitido. Falar com ambos apenas na utilidade da máscara. É possível, portanto, dizer que quem mais sofre é sua mulher, que está tendo de dormir sozinha sabendo que seu marido está em outro cômodo em regime de semi-isolamento até que se prove o contrário da contaminação coronática.

Nem sempre um homem sensato é sensato o tempo todo. Às vezes existe ceticismo no inconsciente e, nesse caso, a incredulidade venceu. O homem que vendia bom senso foi derrotado pelo próprio orgulho e pelo ceticismo.