Produtora francesa “Arte.tv” lança documentário na Europa e faz alerta para graves riscos à democracia no Brasil nas eleições de 2022
O documentário “Propaganda: The New Manipulators” foi lançado recentemente na Europa. O curta, que ainda não tem data para lançamento no Brasil, faz um diagnóstico preciso das redes de desinformação no mundo, citando o caso da Índia, com Narendra Modi, Itália, com Matteo Salvini, Estados Unidos com Trump, e o Brasil, com Jair Bolsonaro. Todos estes líderes chegaram ao poder com a ajuda de uma ampla rede de desinformação coordenada por cientistas da computação e especialistas em big data.
O curta também entrevistou o professor e pesquisador de redes sociais David Nemer, que junto de um grupo de especialistas do Brasil - incluindo jornalistas e programadores - conseguiu identificar a participação dos filhos de Jair Bolsonaro, Flávio e Eduardo, na engrenagem de desinformação que levou Jair à Presidência do Brasil em 2018.
A descoberta foi possível após Flávio e Eduardo Bolsonaro divulgarem seus números de telefone em suas redes sociais. Após a divulgação, os números foram salvos e buscados nos grupos monitorados, e assim foi possível identificar que eles não só estavam nos grupos, mas eram a “cabeça” das operações de desinformação, administrando os espaços e gerenciamento a circulação de fake news.
Nemer contou como funcionou parte da investigação que chegou aos filhos do Presidente e citou a dificuldade de acompanhar um espaço como o WhatsApp ou Telegram, onde se multiplicam e circulam de forma rápida e sem controle as falsas informações.
O professor de estudos de mídia da Universidade da Virgínia também foi ameaçado de morte pela descoberta. “Continue onde está e não volte ao Brasil, nunca”, diz algumas das mensagens ameaçadoras. O monitoramento da desinformação no Brasil se tornou uma atividade de alto risco.
A lógica por trás das engrenagens da desinformação são as mesmas: despertar o máximo de ódio e raiva possível promovendo micro direcionamentos psicológicos, chegando à chamada “manipulação on-line”, uma prática que atenta contra à democracia e a livre capacidade de escolha.
As vítimas da desinformação são, em especial, a imprensa, ativistas e opositores de ocasião, alvos de uma rede ávida por aumentar seu engajamento a qualquer custo, utilizando-se de mentiras.
A jornalista da Folha, Patrícia Campos Melo, foi uma das vítimas da rede depois de desvendar o sofisticado esquema de desinformação. Patrícia foi vítima de uma campanha violenta para desqualificar as informações trazidas por ela.
A repórter foi acusada de trocar sexo por informações e até mesmo por trabalhar “em favor do PT”, sendo atacada em todas as redes: WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram. A descoberta do esquema foi analisada pelo TSE, que considerou que a prática “não teve influência no processo eleitoral de 2018". O órgão prometeu endurecer a fiscalização nas eleições de 2022.
IMSI Catcher: o que é a ferramenta?
O IMSI Catcher é um aparelho que o documentário desvenda. Utilizado por agências de espionagem, ele coleta números de telefones ativos em um raio de quilômetros determinado.
Após a varredura feita pelo aparelho, os números coletados são encaminhados para uma planilha e depois convertidos em listas de disparos com conteúdo específico, psicologicamente programado para despertar ódio e raiva. Muitas vezes são utilizados para fins políticos.
A prática, que viola a Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil, não parece intimidar quem pretende utilizá-la nas eleições de 2022. Na investigação do documentário, um dos funcionários da empresa que vende as listas coletadas com o IMSI Catcher diz que “ele será muito usado em 2022”.
“Somente em São Paulo eu tenho 70 aparelhos”, “Os números utilizados nos disparos são internacionais e desaparecem após o envio da mensagem, não tem risco”, explica um dos negociadores das listas.
Depois de captados os números, as listas são ofertadas e comercializadas com pré-candidatos e lideranças políticas que pretendem entrar na disputa eleitoral. Muitos recebem os contatos por e-mail ou telefone para adquirir as listas.
À reportagem, Paulo Perrotti, que é professor de cibersegurança e Diretor da LGPD Solution, empresa especializada em consultoria sobre a Lei Geral de Proteção de Dados, explicou que a utilização do IMSI Catcher para levantamento de base de dados viola as normas previstas na nova lei. “Se a base de dados utilizada não for pública, ele está quebrando a regra”, aponta.
A nova lei também prevê a utilização de base de dados com autorização expressa ou desde que haja interesse legítimo. Neste segundo caso, o texto diz que este caminho “requer uma avaliação cuidada, nomeadamente da questão de saber se o titular dos dados pode razoavelmente prever, no momento e no contexto em que os dados pessoais são recolhidos, que esses poderão vir a ser tratados com essa finalidade”.
Questionado sobre a utilização do IMSI Catcher para levantamento de dados para fins eleitorais, Perrotti aponta que a prática é ilegal. “Ele está coletando de forma errada mesmo, colocando uma anteninha em uma região e coletando todos os telefones que estão ativos, que estão ligando, isso é uma coleta indevida, isso não é um dado público, eu não publiquei isso”, explica.
Utilizado em espaços públicos de grande circulação, como aeroportos e grandes avenidas, o IMSI Catcher obtém dados sem a manifestação de interesse pelo usuário. “A lei é bem clara que é dispensável a exigência de consentimento para os dados tornados manifestamente públicos pelo titular e essa tecnologia não coleta dados manifestamente públicos pelo titular”, completa Perrotti.
São considerados dados manifestamente públicos aqueles publicados em endereços on-line, mídias sociais ou grupos virtuais de acesso público.
Judiciário será capaz de conter ou dimensionar a prática?
Em matéria publicada no jornal O Globo no início do mês, o jornalista Marlen Couto trouxe algumas respostas para essa pergunta. Segundo apurou, as listas para disseminação de fake news continuam sendo negociadas a preços acessíveis – cerca de R$ 0,05 por mensagem enviada - assim como durante as eleições de 2018.
Mesmo com endurecimento das regras, a reportagem considera que o novo ciclo eleitoral será também marcado pela dificuldade em regular essa prática. Será ainda mais difícil sem o apoio das empresas de tecnologia, que não demonstraram preocupação até agora.
A distribuição de conteúdo falso com finalidade eleitoral ainda passa pela obtenção de dados dos usuários, fraude com CPFs, e técnicas de automatização de disparos.
O outro lado, interessado em frear a prática ilegal, trabalha no Congresso Nacional e no judiciário, representado principalmente pelo Tribunal Superior Eleitoral. Nenhuma dessas instâncias foi capaz de apresentar uma solução definitiva para o problema até agora.
O documentário
O curta “Propaganda: the new manipulators” não tem data para estreia oficial no Brasil. A produtora Art.tv também não confirmou uma data para o lançamento e afirmou que está em processo de negociação com as plataformas para exibição no país.