Mesmo depois da comunidade científica tê-la refutado por várias vezes, Brasil abriga 11 milhões de seguidores dessa corrente
Uma das coisas mais fascinantes é desvendar os mistérios da Terra: sua idade, seus primeiros habitantes ou como se deu a primeira vida. Muitas das questões acerca do planeta já foram respondidas; outras, por outro lado, recebem atualizações frequentes. Uma delas, por exemplo, é a que gira em torno do formato que o planeta Terra possui.
Já no século XVI, partindo da teoria de Newton sobre a gravidade e da utilização de dados coletados por expedições científicas da época, foi verificado que a Terra é, na verdade, achatada, sendo maior no equador do que nos polos, e que recebe o nome de elipsoide.
Nesse quesito, em 1994, o mestre em ciências geodésicas Nelsi Côgo de Sá constatou que a massa do planeta não é homogênea e que a densidade da matéria varia em todas as camadas, fazendo com que a superfície da Terra seja irregular. Atualmente, a tecnologia tem ajudado ainda mais nessas pesquisas.
“Hoje dispomos de satélites que fazem a medição das variações do campo gravitacional da Terra. Assim, sabemos que a massa do planeta não está uniformemente distribuída e que o relevo apresenta diferenças em relação a uma esfera ou a um elipsoide”, explica o professor de astronomia e mecânica celeste da UNESP/FEG, Rafael Sfair.
Apesar disso, existe, ainda, um furor acerca da forma da Terra. E esse furor é ocasionado, principalmente, pela disseminação de teorias da conspiração. A principal delas que segue refutando erroneamente o formato do planeta é conhecida como teoria da Terra plana.
Alcançando um maior número de adeptos no Brasil desde 2016, hoje essa teoria possui, de acordo com o Datafolha, 11 milhões de seguidores. O número de terraplanistas, como são chamados os apoiadores dessa corrente, representa 7% da população brasileira.
Devido a esse número, já em 2019 o Brasil recebeu a primeira convenção de terraplanismo. Chamada de FlatCon, ela foi realizada no mês de novembro daquele ano na cidade de São Paulo (SP). Outro exemplo de que a teoria possui certo fôlego é o que acontece nos Estados Unidos. Lá, apenas 66% dos jovens de 18 a 24 anos têm plena certeza de que vivemos em um planeta esférico.
A partir desses números, o que se percebe é que a teoria da Terra plana tem, de fato, conquistado um montante significativo de adeptos. De outro lado, o que essa realidade mostra também é que seus seguidores parecem não se atentar de que essa hipótese foi refutada pela comunidade científica.
As hipóteses, portanto, precisam assentar-se sobre o conhecimento humano já previamente estabelecido. Para se mostrar válida é preciso que uma hipótese possa ser falseada; isto é, é preciso pensar em todas as formas possíveis pelas quais podemos mostrar que ela está errada, pois justamente assim poderemos testá-la.
De acordo com o presidente da Sociedade Astronômica Brasileira, Helio J. Rocha-Pinto, para ser considerada uma teoria, uma hipótese não deve apenas permitir a explicação de fenômenos conhecidos, ela precisa ser capaz de prever eventos futuros. Desta forma, uma hipótese pode ser admitida como teoria científica.
“A hipótese da Terra Plana não possui nada disso. Ela ignora completamente o movimento das estrelas, a natureza dos corpos celestes do próprio sistema solar, as dimensões do universo medidas tanto por trigonometria básica quanto por conhecimentos do eletromagnetismo e da física clássica”, pontua Helio.
É preciso entender, então, o motivo que leva as pessoas a adotarem ideias não aceitas nem mesmo no meio científico. Estudiosos da área da Divulgação e Comunicação da Ciência têm frequentemente dividido as pessoas em dois grupos: as mal informadas e as que acreditam em notícias falsas e teorias da conspiração.
No primeiro grupo, constatou-se que as pessoas não sabem onde buscar por informações que esclareçam as suas dúvidas. Já o segundo age de forma a corroborar com suas convicções políticas e religiosas. “Este tipo de atitude sempre existiu. A grande questão é que, atualmente, o disparo de notícias falsas, sejam elas relacionadas à ciência ou à política, está recebendo aporte financeiro para circulação. Então, claramente estamos presenciando uma disputa pela verdade”, conclui a astrofísica do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), Patrícia Figueiró Spinelli.
Existem, no entanto, outros dois importantes vieses que podem explicar a crença na teoria da Terra plana; o primeiro deles está na neurociência, nela, o que se tem são dois importantes pontos, os quais são o negacionismo ligado a um narcisismo patológico e o protagonismo da internet no cotidiano social.
De acordo com o neurocientista, neuropsicólogo e psicanalista Fabiano de Abreu, a era atual é uma em que a ansiedade está muito aflorada. Quando se tem esse sentimento, a amídala, que é a região do cérebro onde ficam as memórias negativas, é acionada. “Então, tudo que se torna uma ameaça torna-se também uma negação por não querer aceitar algo que você considera uma ameaça”, explica. É aí que entra o narcisimo patológico. A negação faz com que a pessoa seja notada.
No que se refere à internet, o neurocientista afirma que, além de ela ter deixado as pessoas mais sós, ela está deixando seus usuários menos inteligentes por conta do facilitismo que ela oferece. Esse facilitismo que a internet dá, em que a pessoa busca apenas o conteúdo superficial e não inteiro, segundo Abreu, faz com que se crie razões sem conhecimento.
Para o presidente da Sociedade Astronômica Brasileira, Helio J. Rocha-Pinto, porém, outro ponto que justifica a crença na teoria da Terra plana é a fé. E, nesse sentido, a neurocientista e professora de linguística da UFRJ, Aniela Improta França, sugere uma consideração: “A reflexão que se propõe aqui é que as hipóteses lato senso, de sentido amplo, e as stricto senso, de sentido literal, entram naturalmente em loops de transfiguração que ligam o saber científico às crenças, passando por descaminhos que não têm compromisso com a verdade nem com a ética. Porém, eles servem especificamente à manutenção de expedientes de poder e controle de menor ou maior periculosidade”, analisa.
Nesse sentido, Aniela cita como exemplos, entre outros, a negação do Holocausto na Alemanha, a participação do Bush no atentado ao World Trade Center e a inexpressividade da Covid-19 como sendo ‘só uma gripezinha’. “Para que sempre tentar fazer sentido meticuloso do mundo? Fora do âmbito da ciência, onde a investigação de hipóteses é a função fundamental, na vida do dia a dia é sempre mais saudável não propormos relações lógicas sobre o que não conhecemos. É melhor aceitarmos que pouco sabemos e que viver implica em saber lidar com o caos”, sugere.
No intuito de promover um maior esclarecimento científico e evitar a propagação da teoria da Terra plana, os especialistas ouvidos listaram alguns argumentos que refutam a ideia difundida pelos terraplanistas:
- A análise das sombras produzidas pelo Sol em diferentes locais do Globo num mesmo momento.
- A observação empírica da Terra, seja por voos ou imagens de satélites.
- O cálculo da paralaxe lunar, que permite calcular a distância até a Lua.
- As circum-navegações: se navegarmos sempre na mesma direção, ninguém vai cair em nenhum precipício e, sim, chegar no mesmo ponto.
- O formato dos demais planetas do Sistema Solar.
“Fora todas essas obviedades, é difícil imaginar que, com a observação de que todos os planetas e satélites naturais são esféricos, por quê somente a Terra seria plana? Além de ser ilógico, não tem como não ceder às evidências das fotos tiradas por sondas espaciais, a não ser com argumentos baseados em crenças pessoais, o que está fora do escopo da metodologia científica”, questiona o astrônomo e vice-diretor do Observatório do Valongo/UFRJ, Dr. Rundsthen Nader.
Observando esse cenário de disputa entre ciência e não ciência, o que se conclui é que está faltando um elo de comunicação entre ciência e público. É o que acredita o astrônomo da UFRJ e coordenador de comunicação da Sociedade Astronômica Brasileira, Thiago Signorini Gonçalves. Para ele, a ciência se separou do público ao longo do tempo e isso causa problemas a longo prazo porque, no final das contas, a compreensão científica do que é ciência pode estar sendo deixada de lado.
Neste ponto, então, o astrônomo afirma que o campo da ciência tem um importante desafio a ser vencido. “O desafio que os cientistas e os divulgadores enfrentam hoje em dia é o de que não adianta dar o resultado pronto ao público. O que precisa é, sim, dar as ferramentas para que ele leia as notícias, reflita de uma maneira melhor e consiga diferenciar o que é ciência, o que é vidência e o que é simplesmente uma ideologia”, destaca Gonçalves.