Sem vacina, o contágio só terminará quando 80% da população brasileira tiver contato com o coronavírus

Em entrevista, o professor Raul Borges Guimarães esclarece que não há outra medida a ser tomada senão o isolamento social

Até a data da publicação desse texto, o Brasil contabilizava 1.532 óbitos e mais de 25.262 mil casos confirmados do coronavírus, de acordo com levantamento do Ministério da Saúde. Ainda assim, o presidente Jair Bolsonaro segue defendendo a ideia de negação do vírus.

Enquanto isso, de acordo com um estudo realizado pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), 13 cidades de médio porte localizadas no interior do estado de São Paulo estão se tornando os novos principais destinos da Covid-19, sendo elas Araçatuba, Araraquara, Bauru, Campinas, Marília, Piracicaba, Santos, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, São José dos Campos, Sorocaba e Votuporanga.

Em São José do Rio Preto, o prefeito Edson Coelho Araújo (MDB) está estudando liberar cultos religiosos. Já em Taubaté, cidade também do interior de São Paulo, o prefeito Bernardo Ortiz Júnior (PSDB) assinou um decreto em 07 de abril que flexibiliza as medidas de combate ao vírus permitindo que salões de beleza, barbearias e estabelecimentos da área de saúde funcionem seguindo regras estritas de saúde.

Para um melhor esclarecimento sobre esses e outros assuntos que dizem respeito ao coronavírus, o Jornal O Prefácio conversou com o professor titular do Departamento de Geografia da UNESP (Universidade Estadual Paulista) de Presidente Prudente, Raul Borges Guimarães, que, entre outras coisas, salienta que o uso da cloroquina no tratamento de pacientes positivos a Covid-19 é um achismo.

Confira abaixo a entrevista na íntegra:

OP: Quais os motivos você acredita que sejam determinantes para que as prefeituras do Estado de São Paulo afrouxem as medidas de prevenção contra o coronavírus? 

RBG: No Brasil, nós estamos tendo uma disputa de narrativas. A primeira é aquela em que ocorre a negação do vírus. O Brasil, por sinal, é um dos últimos países no mundo a defender tal ideia. A partir dela, uma teoria cujo líder mundial é o nosso presidente da república, Jair Bolsonaro, existem pessoas que ainda acham que o vírus não existe. Esse fato tem atrapalhado bastante porque o Bolsonaro possui uma base social que deve ser reconhecida. A fala dele, então, ressoa na sociedade, o que é uma força.

A outra narrativa é aquela defendida por alguns empresários do Brasil, país de um capitalismo perverso e selvagem em que se acumula riqueza em cima da precarização do trabalho e da pobreza. Esse tipo de empresário é aquele que, para manter os ganhos, o avanço no número de mortes não o importa.

Eis então que os prefeitos recebem uma pressão enorme de teor econômico. O outro lado nesse cenário é uma posição técnica embasada na ciência na qual temos as recomendações da Organização Mundial da Saúde, a Organização Panamericana de Saúde e do próprio Ministério da Saúde.

OP: Dos 13 municípios levantados como os principais novos focos do coronavírus no Estado de São Paulo, qual deles é aquele que gera maior preocupação para a comunidade científica e por quê? 

RBG: Quando nós identificamos 13 cidades principais, todas elas têm um potencial de disseminação do vírus pelo papel que desempenham nas suas respectivas regiões. Neste final de semana (11 e 12 de abril) nós acompanhamos com preocupação o Vale do Paraíba. Então, São José dos Campos, que é uma das capitais regionais mais próximas da metrópole, está crescendo exponencialmente em número de casos, passando até mesmo Ribeirão Preto e São José do Rio Preto, o que permite ver, dia após dia, mais municípios da região com casos confirmados. O Vale do Paraíba, portanto, vai se transformar numa região do Covid.

São José dos Campos, porém, possui outra questão além do afrouxamento de medidas preventivas que deve ser levada em conta. A cidade está localizada em uma região muito industrial, onde, por sinal, as fábricas não pararam por enquanto. Então o Vale do Paraíba tem uma concentração muito grande de indústrias e empresas que ainda estão funcionando. É muito difícil controlar a difusão por ali. Era esperado, então, que houvesse uma expansão no número de casos confirmados de Covid na região.

Essa ideia de afrouxamento está forte no oeste paulista. Eu ouvi dizer que em São José do Rio Preto o prefeito está pensando em permitir os cultos religiosos. No oeste paulista, dada essas flexibilizações, dentro de algumas semanas a região pode começar a sentir os efeitos disso.

OP: Como você enxerga a relação do Brasil com a Covid-19 em comparação as outras nações? É mais favorável ou acredita que ela tende a piorar? 

RBG: O Brasil é o país com maior número de casos da América do Sul. Porém, quem fechou as fronteiras internacionais não foi nem o Brasil, foi a Argentina, o Paraguai e o Uruguai. Nossos países vizinhos fecharam as fronteiras pelo risco que o Brasil está oferecendo.

O coronavírus agora está até mesmo começando a entrar nas favelas, mas por enquanto se observa uma difusão que é a hierárquica e está mudando para a comunitária. A comunitária, por sua vez, é uma transmissão horizontal que, ao entrar nos bairros mais pobres, dá início a outra fase de contágio.

OP: O número de curados ao redor do mundo ainda é superior ao de óbitos causados pelo coronavírus, sendo 474.261 contra 125.910. Apesar de a grande mídia já ter trazido as informações acerca da prevenção, quais atitudes você gostaria de reforçar para que a população adote? 

RBG: É a questão do isolamento social. Nós estamos falando de uma doença que ainda não tem remédio ou vacina, então não há outra medida a ser tomada senão o isolamento social. Precisa se criar o bloqueio epidemiológico e a vacina cria um obstáculo porque ela faz surgir uma parcela de imunes que precisa atingir 80% da população. Quando isso acontecer, o vírus não terá como circular.

Então como eu não tenho vacina, a verdade é que isso só vai terminar quando 80% da população brasileira, ou seja, entre 170 e 180 milhões de pessoas, tiver contato com o vírus. Então como o isolamento social diminuiu o ritmo da proliferação, se vai dando tempo para a população ir tendo contato e a gente segue cuidando dos casos mais graves, isso porque não há sistema hospitalar no mundo que dê conta de atender todas as pessoas que precisam nesse curto intervalo de tempo.

Me parece que Manaus será a primeira capital nacional a ter uma crise sistêmica. O cenário lá está assim, você chega no hospital e não tem respirador para todo mundo. Então cabe ao médico escolher quem vai morrer porque ele não tem equipamento para todos. É muito triste!

É uma mentira, portanto, dizer que o isolamento prejudica a economia. Se não tiver o isolamento o estrago será muito maior. Se ele não tivesse sido adotado, São Paulo, por exemplo, já estaria no colapso sistêmico. Infelizmente, mesmo com o isolamento no estado, talvez a gente não dê conta [do volume de contaminados]. Todos nós termos contato com o vírus, é um processo epidemiológico!

OP: O presidente Jair Bolsonaro segue defendendo a ideia de que seja feito o isolamento vertical mesmo com o país alcançando a marca de 1.532 mortes pelo vírus até o momento. Se o país assim o fizesse, o que aconteceria? Qual seria seu resultado? 

RBG: Nenhum. Inócuo. Não tem embasamento científico. É perverso! Eles chamam de imunização por rebanho que funciona assim: Se expõe muitos e, assim, se acelera o processo de contágio até que 80% da população fique contaminada. A proposta dele é assim: "Vamos embora para a rua enfrentar o vírus!".

Só que não é verdade que a Covid-19 seja uma doença de idosos, algo que Bolsonaro insiste, porque mais da metade dos internados e dos óbitos é de pessoas menores de 50 anos. Contudo, a parcela idosa é de risco, vulnerável.

OP: A Nova Zelândia conseguiu frear o crescimento de mortes por coronavírus ao adotar um confinamento rigoroso, fechando fronteiras e o bloqueio de circulação de pessoas nas ruas por quatro semanas. Desde o início da pandemia, em janeiro, o país registrou apenas um óbito. Pensando no Brasil, você consideraria o isolamento intensivo uma alternativa mais eficaz? 

RBG: É muito difícil comparar o Brasil com a Nova Zelândia porque ela é um país do tamanho aproximado do Espírito Santo e com uma população entre 20 milhões de habitantes. Deve-se, portanto, tomar cuidado com esses estudos comparativos. Agora, cada país deve encontrar a sua forma de enfrentar a pandemia.

Tem alguns virologistas dizendo que é uma grande besteira você comparar esse vírus com a gripe. Ele tem uma transmissão oral, mas também fecal. Então onde não tem saneamento básico potencializa o risco de transmissão. Por isso, vamos pensar num país do tamanho do Brasil com os problemas de saneamento que nós temos, disparidades regionais, extremas desigualdades sociais, um país com 300 mil casos de dengue... E aí está entrando o Covid, num país desse...

Agora, outra coisa que é importante dizer é que em algumas favelas o isolamento é muito difícil. Pensa em Paraisópolis (SP), que se tem 40 mil habitantes por quilômetro quadrado... Você tem uma casa que mal tem janela em que 10, 15 pessoas dormem no mesmo cômodo. Então essa campanha toda do isolamento, do lavar as mãos é uma coisa muito para classe média. Está faltando a gente ter um olhar sobre os bairros mais pobres, falta mais debate sobre isso!

Outro problema são as comunidades indígenas. Recentemente mesmo morreu um menino de 14 anos da tribo indígena Yanomani do extremo norte do Brasil. O vírus chegou lá contaminando sete indígenas e matando esse menino.

OP: O coronavírus conseguiu fazer com que o Brasil fosse, pelo menos durante o combate, um território apolítico em prol de um bem comum? 

RBG: Nós estamos num momento de união, independente dos partidos. Estamos em um momento acima dos interesses partidários. A vida das pessoas tem que estar acima de qualquer interesse, seja ele econômico, politico partidário ou qualquer outra coisa.

OP: Mesmo sem o apoio do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ou um consenso da comunidade científica sobre sua eficácia, tanto o presidente Jair Bolsonaro quanto o prefeito de São Paulo (SP), Bruno Covas, defendem o uso da cloroquina no tratamento de pacientes confirmados com o coronavírus. 

Na Suécia, por exemplo, hospitais suspenderam o uso do medicamento por conta de efeitos colaterais, como arritmia e paradas cardíacas. Visto isso, o que você tem a dizer sobre o uso da cloroquina na terapia contra o vírus? 

RBG: É um chute, um achismo. Não tem embasamento teórico nenhum! O uso prolongado dessa droga gera sequelas e, portanto, jamais pode ser usada sem prescrição médica. O Bolsonaro está pensando que vai vender esse remédio igual à aspirina, isso é um desserviço que o presidente da república faz ao país. Não é assim que funciona!