O papel do Ghost Producer na era do streaming

Processo de mudança da produção analógica para digital deu autonomia ao artista e favoreceu o produtor fantasma, mas originou novos desafios

Ghost producer não é um termo novo. No mundo da música, ele tem ganhado novos olhares a partir da declaração de artistas como Skrillex, Steve Aoki, David Guetta e Tiësto, que afirmam fechar parcerias com tais profissionais para a elaboração de seus hits.

No começo desse ano, porém, o trabalho do ghost producer adquiriu grande atenção por conta das acusações de plágio envolvendo o DJ Alok. O músico foi acusado, nas primeiras semanas de 2022, de ter usado 15 músicas da dupla de produtores fantasma Sevenn e assinado como se fossem suas e de não ter repassado os pagamentos pela colaboração. Un Ratito, faixa que inclui participações de Luis Fonsi, Mike Towers e Lenny Tavárez, é um exemplo da motivação do processo que veio a público em 22 de janeiro com a publicação de uma notícia na Billboard.

Cena do clipe de Un Ratito, música do DJ Alok em parceria com Luis Fonsi, Mike Towers e Lenny Tavárez. Imagem: reprodução da internet

Mesmo o ghost producer sendo definido como uma peça da engrenagem de composição ou simplesmente como co-produtor cujo nome não entra na lista de créditos das músicas produzidas, o evento envolvendo o DJ Alok evidencia não apenas os desafios da profissão, mas também as adversidades existentes por conta do streaming e a necessidade da diferenciação entre produção anônima e não anônima.


De acordo com o co-fundador do Ghost Producer Brasil
Raphael Martins, quando a produção é anônima, se abre mão também dos direitos autorais e conexos, pois não é permitido quebrar o anonimato sobre a autoria de uma composição. “É por isso que o investimento de uma produção desse porte precisa ser maior, afinal, a monetização posterior é impossível”, explica.

Já a produção que não é baseada no anonimato, segundo Martins, dá para delimitar os direitos conjuntos e conexos, mas não que isso seja obrigatório, pois o direito autoral com anonimato se torna uma exceção e, por isso, alienável. Ou seja, pode ser transferido pra qualquer pessoa. “Por isso creio que o evento envolvendo o Alok ocorreu por falta de acordo prévio, por não deixar tudo de forma clara, transparente e em contrato escrito”, supõe.

No âmbito do streaming, o ghost producer enfrenta um desafio inerente à criatividade de composição. Afinal, mesmo que por um lado exista, nos dias de hoje, aproximadamente 40 milhões de músicas no Spotify e 53 milhões no Deezer, uma música só pode ter até oito tempos, o que dificulta a produção de uma canção alheia a semelhanças, mesmo que sutis, com outras composições.

Segundo o também co-fundador da Ghost Producer Brasil Romulo Felippe, isso é resultado do dinamismo engatado pelo mundo atual. Para ele, o ser humano consegue surpreender mesmo quando as ideias revolucionárias se esgotam entre os quatro cantos do planeta onde haja música de qualidade. “De fato, nada se cria, tudo se transforma e, na música, não seria diferente, pois ela é cíclica”, observa. “E mesmo havendo semelhanças no que tange estilos musicais, a música sempre dá um jeito de trazer algo novo, pois, no fim, somos uma construção do meio em que estamos inseridos e recebendo estímulos diariamente”, conclui.

Esse dinamismo no qual o mundo se encontra acaba por explicar também a diferenciação entre o trabalho do ghost producer na era analógica e na era do streaming. O mundo ficou mais acelerado e as tendências ficaram mais fortes, porém curtas ao mesmo tempo, fazendo com que os trabalhos ficassem mais descartáveis e a demanda por novos materiais musicais aumentasse consideravelmente.

Para Felippe, essa mudança, principalmente tecnológica, deu mais autonomia para os produtores e artistas. “Hoje você não precisa investir centenas de milhares de reais ou dólares em equipamentos para fazer uma música de qualidade, muito menos ter custos de fabricação do vinil/CD e de toda a logística que isso acarreta”, detalha. “A faixa sai pronta para alcançar milhões de pessoas direto do computador do próprio artista”, destaca.

Apesar de haver mais liberdade na era do streaming, esse mesmo conceito, no que tange seu financiamento e manutenção, está sofrendo grande ameaça. Apresentado ao Senado na primeira semana de abril pelo seu criador, o deputado federal Sanderson (PL-RS), o PL 806/2022 tem o intuito de tornar opcional o repasse dos direitos autorais de músicas executadas em ambientes públicos com fins comerciais ao ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição).

Imagem: reprodução da internet

Mas não só isso. Segundo o advogado Marcelo Pretto, professor de direito autoral, tal PL abre precedente para relativizar e diminuir direitos autorais de ordem moral e patrimonial para outras áreas protegidas pela Lei 9.610/98, tais como Fotografia e Literatura.


Embora esteja tramitando agora no senado, o PL 806/2022 é um projeto de Lei que está correndo nas casas legislativas e está apensada à 4973/192 que, por sua vez, está anexada ao PL 6226/2005. Em outros termos, isso indica que está quase há 17 anos perambulando no Legislativo, cada qual com seu texto e objetivos, porém não aprovadas até o presente momento.

De acordo com Pretto, existe a possibilidade de o PL 806/2022 ser aprovado juntamente com os outros. Porém, como tem o objetivo de alterar direitos já consolidados, seria um retrocesso ao Direito de Autor e pode ser barrado por duas razões.

A primeira, segundo ele, se refere ao retrocesso às garantias já conquistadas pela evolução aos Direitos Autorais no Brasil, aqui pressupondo que a cada nova alteração de uma Lei, mais garantias virão a favor daquela classe protegida.

A outra é associada ao real prejuízo patrimonial que os autores ou titulares dos direitos autorais irão ter. “Ora, se há um órgão oficial arrecadador de royalties que tem a obrigação de repassar o valor aos artistas e titulares de direito, tal órgão, para ter eficácia, deve funcionar conforme as leis e a ética”, analisa. “Se este órgão não repassa tais valores, que se apure supostas fraudes e responsabilize quem as causou”, ordena.

Se o repasse dos direitos autorais for efetivamente facultativo, como propõe o PL 806/2022, o advogado e professor de direito autoral prevê que, no primeiro dia após publicação desta futura lei, não mais haverá tal arrecadação ao órgão oficial ECAD. “Até que sejam criadas outras instituições, a prática já estará sedimentada e os prejudicados serão aqueles que têm os royalties como fonte de renda”, vislumbra. Por essa razão, o PL 806/2022 representa, além do retrocesso às garantias já conquistadas pelos autores e criadores de obras artísticas em geral, o desfomento à produção de propriedade intelectual e a desvalorização tanto da cultura quanto das produções artística e científica. 

“Num momento histórico em que o mundo privilegia a capacidade de um indivíduo pátrio criar arte e ciência gerando riqueza cultural e econômica, o Brasil, infelizmente, vai na contramão ao incentivar algumas empresa e determinados setores da economia a canibalizar a única fonte de renda do artista com o único pretexto de aumentar o lucro em sua atividade não pagando os direito autorais a seus criadores e titulares”, lamenta o advogado Marcelo Pretto, professor de direito autoral.