Relacionamento abusivo: a violência física e emocional disfarçada de amor

Em entrevista, a psicoterapeuta Lara Marques explica como encontrar indícios de que a relação será tóxica

Com o avanço das redes sociais e a popularização dos meios de comunicações, cada vez mais se torna comum o acesso às histórias de relacionamentos tóxicos e abusivos que, em sua maioria, são heteronormativos, na qual em grande parte dos casos a vítima acaba sendo a mulher.

De imediato, pode parecer difícil reconhecer que se tratava de um relacionamento tóxico. Entretanto, alguns comportamentos já são suficientes para saber se essa relação será positiva ou não, sendo eles: o excesso de preocupação de uma das partes, o ciúme disfarçado de cuidado, as necessidades de controle das situações, entre outros.

Além disso, é importante ressaltar que os relacionamentos abusivos não escolhem classe social, cor de pele ou gênero. Para o abusador basta entender as fraquezas das possíveis vítimas e, a partir daí, investir em manipulações.

Sendo assim, para nos aprofundarmos mais sobre este tema tão necessário, entrevistamos a psicoterapeuta Lara Marques, que atua nas redes sociais como facilitadora: unindo feminismo e psicanálise.

Confira a seguir a entrevista na íntegra:

O Prefácio: O que deve ser feito para que a vítima entenda que não é culpada e, ao mesmo tempo, perceba os seus padrões amorosos e o que a fez ser atraída na relação anterior?

Lara Marques: Sobre os abusos, sabemos que a culpa é sempre do agressor. No entanto, para que as vítimas não tenham que ficar em uma posição passiva frente aos agressores, é importante entender que existe um padrão inconsciente nas suas escolhas amorosas, e é necessário buscar enxergar o próprio padrão olhando para si e para suas relações.

Na psicoterapia esse processo é menos difícil com o auxílio do analista. A partir da consciência desses padrões, a vítima compreende mais profundamente o que ela busca naquelas relações - tanto o que ela busca com o relacionamento amoroso quanto o que ela viu no parceiro que lhe fez apostar nele. A partir disso, ela consegue ficar menos sujeita a esse padrão inconsciente que, às vezes, não está levando-a até relações saudáveis.

O.P.: Quais atitudes são necessárias no início da relação para que a pessoa perceba que está prestes a entrar em um relacionamento abusivo?

L.M.: O primeiro ponto é saber reconhecer as diversas categorias de abusos: violência física, emocional, sexual ou patrimonial. Isso se dá através de acesso à informação. Também é possível reconhecer um abuso simplesmente percebendo os sinais que o outro nos dá, antes mesmo de ocorrer um abuso de fato.

Neste sentido, é preciso se atentar se o outro nos demonstra sinais de agressividade, indisponibilidade, grandes desequilíbrios emocionais, imaturidade, irresponsabilidade, falta de empatia com os outros (no termo popular “egoísmo”), ou até mesmo uma postura muito machista. Todas essas características são sinais de alerta, pois podem resultar nas diferentes categorias de abusos futuramente, portanto, é interessante que as mulheres evitem.

O.P.: Recorrentemente, é possível encontrar na mídia relatos de vítimas que se libertaram de seus relacionamentos abusivos, como é o caso de Duda Reis e Pétala Barreiros. Isso mostra que todos estão suscetíveis a este tipo de relacionamento. O que você vê em comum nos dois casos?

L.M.: Nos dois casos são meninas muito novas que foram alvo de homens mais velhos - justamente pela falta de maturidade.

Os abusadores escolhem suas vítimas não pelo acaso, mas sim buscando sempre um perfil de mulheres vulneráveis, passivas, emocionalmente frágeis, que possuam dependência emocional ou financeira. Geralmente, mulheres com uma autoestima baixa, para que fiquem à mercê da validação e do amor deles.

Todas essas características explicam o interesse de um homem em meninas menores de idades, pois são as vítimas perfeitas para abusar, explorar e coagir.

Duda Reis e Pétala Barreiros representam para os abusadores esse papel de vítima ideal devido as suas características. O que fica destes casos é a importância de a sociedade não julgar como normal ou saudável um homem se relacionando com adolescentes, como aconteceu.

O.P.: Ao terminar o relacionamento abusivo, a mulher sofre dois tipos de crítica: como ela se sujeitou a isso e se tudo que está falando é realmente real. Ao que se deve a culpabilização da vítima?

L.M.: As pessoas acreditam que a mulher que vive um relacionamento abusivo está naquela relação porque ela quer estar e possuem dificuldade de entender que a pessoa não consegue sair do relacionamento.

A verdade é que: o abusador vai tirando os recursos psicológicos e materiais da vítima, e, ao mesmo tempo, vai criando uma série de cenas e discursos para a pessoa se responsabilizar pelos abusos dele ou ter esperanças de uma melhora na relação.

Assim, a vítima se mantém quase que suspensa da realidade, não conseguindo enxergar as coisas de fato como elas são e, consequentemente, não conseguindo sair da relação.

Também é preciso notar que a nossa sociedade tende a responsabilizar e culpabilizar mulheres esteja essa mulher em qualquer situação. Um exemplo muito clássico é a famosa pergunta “mas o que ela estava vestindo?” em situações de abuso sexual. Outro exemplo é como meninas de 14 anos já são vistas como mulheres conscientes e responsáveis por seus atos, e homens podem ultrapassar a maioridade sendo tratados e nomeados com o “mas ele é só um menino”. É difícil para a nossa sociedade desvincular a imagem da mulher da culpa e da responsabilidade por tudo.

O.P.: Uma pessoa dentro de um relacionamento abusivo consegue enxergar sinais de abusos em outras áreas de sua vida?

L.M.: Não necessariamente. Não é uma regra que uma mulher que está em um relacionamento amoroso abusivo não consiga enxergar os abusos fora da relação.

É preciso entender que a relação amorosa geralmente é formada a partir de um vínculo mais forte, mais íntimo. Às vezes na intimidade e no ambiente privado fica mais difícil de se notar um abuso do que em um ambiente de trabalho compartilhado, por exemplo. Quando existe abuso em espaços compartilhados é mais fácil para vítima perceber a violência, tanto pelo sentimento de vergonha que ela pode sentir, quanto pela percepção de outras pessoas. No entanto, existem as pessoas que possuem dificuldade de notar abusos em qualquer ambiente ou em qualquer relação.

O.P.: Uma das técnicas do abusador é tornar sua vítima completamente dependente dele, as impedindo assim de estudar e trabalhar, por exemplo. Mas outro comportamento comum em relações é quando o abusador se aproveita dos bens e da vida financeira da vítima. Isso categoriza como sinais de uma relação tóxica?

L.M.: Os relacionamentos abusivos mais clássicos, se assim poderíamos dizer, são os que os homens impendem as mulheres de ter acesso à qualquer meio trabalho ou estudo. Os abusadores fazem isso para demarcar mais ainda uma relação de poder sobre a vítima, para fazer com que a mulher não tenha meios materiais de deixá-lo, para isolar a mulher da sociedade e também para minar a autoestima dela - algumas mulheres que dependem materialmente do homem podem acreditar que não são capazes de se sustentar por si mesmas, se mantendo na relação mesmo que ela sofra violências ali. Essa relação já é bem conhecida no imaginário popular de certa forma.

A dependência financeira ainda é um fator importante a se considerar, além do fator cultural. A nossa sociedade ensina e influência mulheres a priorizarem os seus relacionamentos amorosos em detrimento de outras áreas de suas vidas, enquanto são naturalizados uma série de comportamentos masculinos abusivos. O resultado é que o abuso é compreendido como parte natural da relação e as mulheres muitas vezes aceitam, pois o maior desejo delas é estar em um relacionamento amoroso.

No entanto, com as mudanças em nossa sociedade e o avanço que as mulheres têm conseguido atingir na vida financeira, é preciso observar outras formas de abuso e na dinâmica financeira nos relacionamentos. Ou seja, o abuso pode se dar também através da exploração dos recursos financeiros e materiais das mulheres, para além da violência física, sexual, psicológica e da exploração do trabalho doméstico, como sempre ocorreu. É uma modalidade de abuso menos falada e mais recente, pois só foi possível de ocorrer a partir do crescimento do número de mulheres financeiramente independentes.

O.P.: Quais são os transtornos psicológicos desenvolvidos por vítimas de relacionamentos tóxicos abusivo?

L.M.: Os transtornos e os impactos são incontáveis, variam muito de uma pessoa para a outra. Os mais comuns são a ansiedade e a depressão, que podem vir associados ao estresse pós-traumático e a episódios de ataques de pânico. É importante ressaltar que todos esses transtornos emocionais são disparadores de sintomas físicos, como alterações no apetite e no sono, gastrite nervosa, entre inúmeros outros.

O.P. - Existe vida pós relacionamento abusivo? Quais são as chances de cair novamente em uma relação perigo?

L.M.: Existe sim! Muitas vítimas já saíram e conseguiram recuperar a saúde mental e a autoestima. É importante que ela tenha apoio de pessoas próximas nesse momento para se reconstruir e, se possível, que tenha um acompanhamento psicológico para lidar com os sentimentos que ficam após os abusos.

Infelizmente, as chances de uma vítima que sai de um relacionamento abusivo entrar em outro são grandes. Se ela não alcançou uma boa autoestima e se não se fortaleceu psicologicamente após a relação, ela continuará no perfil de vítima ideal que eu já mencionei. Além disso, a própria baixa autoestima é um fator negativo na hora das escolhas amorosas e das exigências para se relacionar. Se eu não enxergo valor em mim e não me amo, eu não consigo definir para o outro o que eu aceito ou não dentro de um relacionamento.

Para se relacionar de forma saudável é preciso que a pessoa consiga reconhecer e estabelecer os seus limites ao outro e que tenha definido os critérios de parceiros e de relacionamento que lhe interessam ou não. Geralmente, a pessoa com baixa autoestima não têm bem claro esses parâmetros, pois não acredita que possui esse poder de escolha e teme ficar só.


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