Apesar de alcançar pódio no streaming, pisadinha não supera sertanejo no gosto popular

Todos os estilos musicais tiveram seus momentos de popularidade. O jazz, por exemplo, teve seu auge a partir de 1917, enquanto o do bolero foi nos anos 50 e, o rock, na década de 1980. Com a pisadinha não foi diferente. Afinal, ela também teve direito a um pico de audiência.

Apesar de os primeiros registros da pisadinha datarem o início dos anos 2000, período em que Nelson Nascimento, autor de músicas como “Fazer Bebê Agora”, garantiu relativo sucesso no interior da Bahia, o gênero obteve fama nacional somente a partir de 2018.

Ao atingir o nível de consagração do ponto de vista econômico e recreativo, é esperado que um gênero musical passe a ser assimilado por artistas de outros gêneros. E isso pode acontecer de diversas formas, seja utilizando trechos como os samples, com parcerias ou então incorporando alguns elementos sonoros característicos.

No caso da pisadinha, existe ainda outro agravante para a sua popularidade que é a influência do funk carioca em sua melodia. Segundo o cientista social e antropólogo Murilo Gelain, isso aconteceu porque, ao longo das últimas décadas, o pancadão, como é chamado o funk carioca, extrapolou os limites socioterritoriais das suas origens, fazendo com que este não seja mais um gênero estigmatizado. “Acredito que o sucesso recreativo, isso é, a capacidade que o funk mostrou ter de fazer o público dançar e se divertir, foi mais preponderante para o surgimento de assimilações, como é o caso da pisadinha”, avalia.

A partir daí é que a pisadinha assumiu sua identidade. Como uma vertente do forró, ela é um ritmo simples, dançante, animado, de fácil memorização e identificação que foi abraçado por artistas como Wesley Safadão, Xandy, Marcia Felippe e Os Barões do Forró, hoje chamado Os Barões da Pisadinha.

Foto: os Barões da Pisadinha durante show no Centro de Tradições Nordestinas (CTN), em São Paulo - Belafotto

Apesar da popularidade assumida pelo ritmo, o empresário sertanejo Wander Oliveira afirmou, em entrevista ao G1, que a pisadinha não veio para ficar. Contudo, essa opinião não é compartilhada pelo coordenador de marketing da plataforma de streaming Sua Música, Junior Vidal.

Para ele, o subgênero se estabeleceu de maneira firme no gosto popular. “É claro que no decorrer dos anos também a própria pisadinha sofreu alterações em seu ritmo, mas acredito que ela ficou”, enfatiza. “Afinal, a nova geração de artistas que surgiu nos últimos meses, como João Gomes, Vitor Fernandes, Tarcísio, Os Barões da Pisadinha e Zé Vaqueiro, neste momento estão conseguindo construir boas audiências, seguidores e reais consumidores – para a pisadinha”, completa.

Uma das alterações por ela sofridas no decorrer dos últimos anos é a derivação chamada de piseiro. Inicialmente conhecida por designar o local em que se praticava a pisadinha, hoje ela também ganhou a conotação de gênero musical e está conquistando cada vez mais apreciadores.

Foto: cena de clipe de "O Povo Gosta é do Piseiro", faixa colaborativa entre Eric Land e Zé Vaqueiro - divulgação

Muito parecido com a pisadinha, o piseiro também possui, segundo a professora titular na Universidade Federal Fluminense Simone Pereira de Sá, influências do funk. “Mais aberto para mistura com outros gêneros, o piseiro é tido, por alguns compositores, como um ritmo que enfatiza as coreografias e que possui uma cadência mais acelerada em comparação com a pisadinha”, explica.

Aparentando ser um ritmo sólido no que tange a aceitação do público, a pisadinha é um exemplo de que as barreiras da música podem ser rompidas e que, portanto, gêneros antes desconexos passem a se tornar parceiros unificados a ponto de proporcionarem ramificações tão populares quanto seus estilos de origem.

De acordo com o cientista social e antropólogo Murilo Gelain, tende-se a ver esses fenômenos como uma espécie de contaminação, como se um ritmo fosse puro e tradicional, e que, a partir do momento que incorporasse elementos de fora, se afastasse de sua essência. “Esse tipo de mistura de ritmos e assimilação acontece e sempre aconteceu, assim como essa dinâmica de ondas de sucesso de ritmos novos que depois saturam e são substituídos por outros”, pontua.

De outro lado, o que esse cenário mostra é o afastamento das músicas tradicionais para com o gosto popular. “A cultura é viva e, portanto, mutante”, destaca Gelain. “Esses gêneros ‘tipicamente nordestinos’ podem perder espaço em eventos como festas e shows, mas não vão deixar de existir porque já são parte da história de vida dessas pessoas”, ressalta.

Pisadinha X Sertanejo

O fato é que o funk carioca foi a base rítmica para a criação da pisadinha. Isso fez, inclusive, com que o estilo desbancasse o sertanejo. O evento foi constatado no ranking semanal do mês de março do Youtube Brasil. Nele, a pisadinha assumiu o primeiro e segundo lugares, enquanto o sertanejo figurou somente a partir da sétima colocação, o pior cenário desde a criação do ranking, em 2018.

No entanto, é da identidade do sertanejo se adaptar a outros estilos. Não por acaso, há aproximadamente cinco anos o mercado entendeu que a mistura de gêneros populares nordestinos com o sertanejo é interessante. “O sertanejo tem uma máquina muito forte que não é só o caso do empresário rico ou da gravadora que investe: são os eventos”, explica o pesquisador e jornalista especializado em sertanejo André Piunti. “Existe um mundo gigante de eventos sertanejos que faz essa máquina girar e é por isso que é tão difícil de um ritmo chegar e desbancar o sertanejo”, avalia.

Foto: público assistindo a show no Caldas Country Show 2018. O evento é tido como o maior festival de música sertaneja do mundo, atraindo uma média de 100 mil pessoas a cada edição - reprodução da internetApesar dessa força empresarial em que o sertanejo está inserido, existe um complicador que pode ser uma justificativa para as disputas pelas altas colocações nos rankings dos streamings, que é a semelhança sonora existente entre as duplas sertanejas.

Segundo o crítico musical Sergio Martins, essa é a constatação de que o gênero está vivendo uma estagnação melódica. “Hoje não se consegue mais identificar quem é quem porque as duplas não têm mais personalidade”, opina. “Creio que o sertanejo perdeu muito de sua identidade, que era o que o diferenciava dos outros gêneros”, avalia.

Ainda assim, o lado cosmopolita e flexível do sertanejo o tem mantido com considerável popularidade e o blindando de potenciais ameaças musicais. Afinal, mesmo assustado com o funk e, principalmente, com a popularidade do forró, o sertanejo os abraçou e os incluiu em suas estruturas melódicas. “A real ameaça vai acontecer quando o sertanejo resolver bater de frente e falar ‘isso aqui eu não incorporo de jeito nenhum’”, reflete Piunti.

Não à toa que o gerente de artista e repertório da Abramus, Leandro Mello, enxerga no sertanejo a verdadeira música popular brasileira. Segundo ele, a queda da popularidade do gênero se deve às medidas restritivas impostas pela pandemia do coronavírus, responsáveis por impedir a realização de shows, os quais são a maior fonte de renda do gênero musical.

Na visão de Mello, mesmo sem shows o sertanejo está recuperando seu espaço. “Recentemente Gusttavo Lima e Luan Santana figuraram no topo do Charts do Spotify, e hoje já podemos ver Zé Neto & Cristiano e Henrique & Juliano no topo das paradas com seus novos trabalhos”, observa.

No entanto, existe um denominador comum quando referido a potencial ameaça ao sertanejo, perigo esse que, inclusive, afeta toda a indústria musical, indo de gêneros como o rock, o samba e o pagode até o arrocha, a pisadinha e o próprio sertanejo. Ele se chama jabaculê.

Também conhecido como jabá, ele consiste em uma prática em que emissoras de televisão e rádio recebem dinheiro para divulgação de determinados artistas. Desde 2003, figura no Congresso um projeto de lei que visa criminalizar essa atividade.

Passados oito anos, o PL 1.048/03 feito pelo deputado Fernando Ferro (PT-PE) segue indeferido pela mesa diretora da câmara dos deputados. E a justificativa dada é a de que para exterminar o jabá é necessário encarar o lobby dos radiodifusores dentro do congresso. Nesse meio tempo, surgiu o Jabá 2.0, situação em que o contexto das rádios é substituído pelas plataformas de streaming.

De acordo com o sócio do escritório Salari Advogados Rodrigo Costa, qualquer financiamento do artista para a plataforma deve ocorrer de maneira correta. Porém, fraudes são perceptíveis nos números de alguns artistas quando seus desempenhos nas plataformas não mantém um padrão esperado.

Segundo ele, a compra de visualização e de curtidas é considerada crime conforme o Art. 171 do Código Penal. “Sendo assim, mesmo que a PL1048/03 seja aprovada, ainda haverá uma complexidade enorme para extinguir a prática”, lamenta.