Precificação dos ingressos para eventos ao vivo reflete a desigualdade social existente no Brasil

Ocasiões como o show de reunião do RBD possuem ingressos cujos valores representam uma base de 66% do salário mínimo

No início de maio, o Aerosmith confirmou a realização de sua turnê de despedida após mais de 50 anos de estrada. Intitulada Peace Out, a sequência de shows, que inicialmente cumprirá 40 datas nos Estados Unidos até janeiro de 2024, gerou indignação aos interessados em presenciá-la.

Isso aconteceu por conta dos altos valores dos ingressos cobrados pela Ticketmaster, que transitam entre uma média de US$ 600 até US$ 2.500 mil, sendo este último o valor referente ao Meet & Greet, setor que dá a chance de tirar uma foto com a banda, caso o pagante seja testado negativo para Covid-19.

Até mesmo para os Estados Unidos esses preços são fora do esperado, uma vez que o salário mínimo do país se encontra ao redor de US$ 1.276, o que significa que a entrada mais cara para o evento equivale a pouco mais de 195% da renda mensal de um cidadão estadunidense.

No Brasil, cenário semelhante acontece. Eventos como Lollapalooza, com seu ingresso mais caro chegando a pouco mais de R$ 3 mil, o show de retorno do RBD com entradas ao valor máximo de R$ 850, ou mesmo o valor de R$ 880 para a inteira do front stage para o concerto que marca a volta de John Frusciante ao Red Hot Chili Peppers, consomem uma faixa de 66% do salário mínimo e reforçam uma realidade comum no país, a desigualdade social.


Foto: reprodução da internet


Uma explicação para as altas cobranças que as bilheterias exercem sobre os preços dos shows foi dada pelo produtor de eventos Mike Sousa, durante entrevista concedida ao Inset, em agosto de 2022. Segundo ele, fatores como políticas econômicas, concorrência, taxa do dólar, no caso de shows internacionais, e a lei da oferta e procura são razões para essa prática.

Esses indicadores, com especial menção ao último, ajudam a explicar a importância do setor de entretenimento no PIB brasileiro. Não à toa que durante a 7ª edição do Congresso Brasileiro de Promotores de Eventos, organizada pela Associação Brasileira dos Promotores de Eventos (ABRAPE) e feita em novembro passado na capital paulista, foi informado que, além de movimentar R$ 75 bilhões por ano, ele foi o que conquistou melhor retorno de atividade no pós-pandemia. Afinal, a cada 10 empregos criados, dois são gerados pelo segmento e suas subdivisões.

Foto: Wendy Wei


​Para o economista Luis Carlos Berti, naturalmente se observa um impacto positivo dessa indústria no PIB pelo fato de gerar renda às pessoas e, com isso, garantir-lhes a condição de consumir. “A questão é que, pelo detalhe dos preços, os shows são muito caros e, infelizmente, acabam se tornando elitistas e fazendo com que as pessoas que realmente gostam desse tipo de evento tenham que abrir mão de uma série de coisas para poder estar presente em uma atração desse calibre”, lamenta.


Tal posicionamento é, inclusive, compartilhado pelo produtor cultural da Som do Darma Eliton Tomazi, jornalista e artista visual. Para ele, não há qualquer justificativa plausível para a exploração descabida de qualquer forma de recurso, e pondera a questão trabalhista. “Praticar preços altos de ingressos para shows e festivais é privilegiar apenas uma classe da população e explorar os recursos dos mais pobres que estarão nesses festivais não para ter o mesmo direito ao lazer, ao entretenimento e à cultura, mas para trabalhar, para servir aos que pagaram pelo ticket”, observa Tomazi. “Enquanto houver quem apenas usufrui e quem apenas serve, sem qualquer equilíbrio, qualquer justificativa é um álibi não comprovado”, critica.

Menos falados, mas não de menor interesse, os shows tidos como menores, por se encontrarem fora do circuito mainstream, podem ser uma alternativa aos grandes eventos de música ao vivo. Com seus ingressos a valores mais enxutos, eles conseguem ser mais acessíveis sem perder a qualidade.

Foto: Alexandre Chang


​Segundo o diretor da assessoria de imprensa Tedesco Mídia Erick Tedesco, isso se deve ao fato de esse tipo de atração demandar logísticas menores em comparação a nomes de grande porte, como Coldplay ou mesmo o Red Hot Chili Peppers. “Quando é um artista só e que não é uma figura em evidência como os que demandam grandes espetáculos, é possível fazer uma negociação para tornar viáveis os shows menores, que seja para uma capacidade de 300 ou 1.300 pessoas”, explica.


Ainda que esse cenário se concretize, o conservadorismo dos ouvintes maduros e até mesmo das rádios, que colocam no agenda setting musical um protagonismo de canções já consagradas, por vezes se esquecendo de novos nomes ou inclusive de expoentes menores, se posiciona como um impedimento na promoção de artistas e bandas fora do eixo popular. “Essa questão do público estar preso àquilo que é antigo e clássico mexe com saudosismo e com lembranças, até porque, a música é algo afetivo que depende da sensibilidade”, comenta Tedesco.

Não só bandas novas, pequenas e fora do mainstream são constantemente cortadas do agenda setting das rádios, mas também os artistas que integram a cena indie. Nesse caso, para se destacar no meio, vem a necessidade de patrocínios e financiamentos para realizar apresentações.

Esse é o intuito da Lei Rouanet. Sancionada em 1991, ela prevê o financiamento para realizar os projetos artísticos e, do outro lado, a empresa patrocinadora tem abatimento fiscal e faz publicidade de sua marca. A partir de tal diretriz, a oficialmente chamada Lei Federal de Incentivo à Cultura não é o principal entrave que incentiva a disparidade de atenção entre os artistas novos e os já consagrados.

Para o músico e escritor Reynaldo Bessa, o principal justificador desse cenário é a mentalidade do investidor brasileiro. Segundo ele, grande parte desses financiadores desconhece a cultura e a arte brasileira. “Como desconhecem o que é verdadeiramente artístico no Brasil, preferem investir em celebridades, pois acham que é um tiro certo, e por tabela, acabam também aparecendo”, avalia. “Dessa forma, os artistas desconhecidos, alguns de grande valor, são preteridos, gerando, assim, um desânimo na própria classe artística pela dificuldade não de aprovar o projeto, mas de captar o valor necessário para pô-lo em prática”, esclarece.

Isso acaba refletindo na realidade brasileira da indústria dos eventos musicais ao vivo. Evidenciando a desvalorização em relação ao conglomerado musical nacional, essa postura, por parte do governo, serve como explicação para a alta popularidade dos festivais e shows internacionais no país.

Tendo um salto de popularidade nos anos 80, esses eventos mostraram que o Brasil tem demanda suficiente para receber diversos nomes do estrangeiro. E isso continua sendo observado. Não à toa que, em 2022, o país recebeu uma média de 36 atrações internacionais entre shows e festivais. Em 2023, até o momento já foram contabilizados 28 eventos desse calibre.

Coldplay durante um dos shows paulistanos da Music Of The Spheres World Tour. Residência na cidade teve público total de 439.651 pessoas. Foto: divulgação


​Essa alta importação da cultura musical acontece, segundo Bessa, porque o Brasil ainda não se livrou do complexo de vira-lata. Para ele, tal iniciativa faz parecer que a Semana de Arte Moderna de 1922 nem existiu. “Ainda achamos que o que vem de fora é melhor e parece que vai ser difícil o cachorro largar esse osso, porque o dono dele sabe muito bem o que fazer para manter essa balada”, observa. "Esse tipo de pensamento é apenas uma parcela mínima do que uma indústria agressiva e invasiva, que ainda está em curso, pode fazer”, alerta.


Tal postura, apesar de predatória, não impacta o cenário da música tradicional brasileira. Para Tomazi, mesmo artistas de gêneros como rap e funk vão seguindo o padrão de enriquecer, de tocar para cada vez mais pessoas, de participar de grandes eventos, de apresentar-se em estádios, pois o capitalismo é o sistema vigente e o dinheiro acaba sendo a meta final. “É uma luta de classes predominante desde que o mundo é mundo”, destaca. “Todos querem ser ou estar ao lado do rei”, metaforiza.

Este é outro fator que reflete no valor dos ingressos, afinal, quanto maior for o espetáculo, maior será sua estrutura e, consequentemente, o preço das entradas. Para o antropólogo
Eduardo Benzatti, psicanalista e professor de antropologia na ESPM, todo o recorte de megashows, de grandes espetáculos e de grandes festivais de música está inserido em uma estrutura maior chamada de indústria cultural ou indústria do entretenimento, que, por sua vez, faz parte de algo maior ainda, que é a indústria do consumo, um sistema que potencializa a ideia básica de qualquer economia capitalista, que é o lucro, a reprodução do capital. “Dessa forma, a disparidade no preço dos ingressos só reflete a desigualdade abismal que existe no país”, pontua. “Ou seja, não é um espetáculo para todos”, conclui.