O som do storytelling

A fala foi a maior invenção da humanidade. Anos depois, a música veio para ajudar no processo da imaginação através de melodias

​​À noite, um pai senta na cama ao lado da filha e conta histórias para fazê-la dormir. Na religião, recortes de escrituras são lidos para multidões de fiéis. Na política, uma boa oratória chega a comover e a garantir votos em uma eleição. Essas ocasiões têm uma coisa em comum: todas elas existem por meio do ato de contar histórias.

Desde a época pré-histórica, essa arte passava a ser adquirida pelos neandertais que, a partir do domínio da fala, contavam seus feitos, suas rotinas e suas conquistas ao redor do fogo, entretendo os ouvintes. Dali em diante, através da linguagem oral, histórias foram transmitidas de geração em geração. Algumas, se tornando lendas. Outras, se tornando mitos.

Hoje, o ato de contar histórias ganhou outro nome: storytelling. É uma modalidade que vem crescendo em importância no meio corporativo e se expandindo rapidamente. Além de ser observado no entretenimento e no terceiro setor, esse conceito chegou, também, no ambiente musical.

Enquanto se une harmonia, ritmo, letra e melodia, o artista é livre para compor sobre o que quiser. Em alguns momentos, porém, a música consegue se associar ao jornalismo por ser uma forma alternativa de aproximar o público de eventos noticiosos.


Inspirado pelo fato de ter um familiar que lutou na Guerra Civil dos Estados Unidos, Axl Rose compôs a letra do que viria a ser Civil War, single do Guns and Roses. Foto: Don H. Doyle


Para o fundador da Storytellers, empresa focada na aplicação do conceito de storytelling em empresas de diversos ramos,
Fernando Palácios, Jane's Got A Gun, do Aerosmith; Civil War, do Guns and Roses; Change, do Scorpions; Last Kiss e Jeremy, do Pearl Jam; Sunday Bloody Sunday, do U2 e Balada de Gisberta, de Pedro Abrunhosa, são exemplos de músicas que deram certo e foram muito bem sucedidas na tarefa de trazer a atenção das pessoas para questões sociais.

Para ele, porém, não é o fato de estar numa música. Segundo Palácios, às vezes se pode ter um olhar enviesado quando se pega casos de sucesso e entre eles tem um padrão, mas esse modelo não é uma garantia de que vai funcionar sempre.

​“A verdade é que não é o formato música, apesar de ele ser muito poderoso”, salienta o fundador da Storytellers. “O jornalismo pode chamar a atenção do público mesmo no formato tradicional ou mesmo usando as redes sociais e até mesmo podcasts para contar boas histórias”, esclarece.

No contexto que tange a união de música e jornalismo, ainda, a receita para contar boas histórias pode vir até mesmo da relação existente entre o compositor, a época em que a obra foi escrita e o ouvinte. E o período que compreendeu a Ditadura Militar no Brasil exemplifica bem isso.

De acordo com a escritora
Martha Terenzzo, professora de storytelling na ESPM, a música naquele momento não tinha apenas o ideário político, mas era narrada fantasticamente com seus personagens. Para ela, nesse recorte temporal, a música servia para contar uma história, trazer as notícias de um mundo que estava acontecendo por detrás do pano e que o jornalismo não podia abordar porque era proibido disso.

“Para mim, então, música é storytelling”, opina. “E juntar história, jornalismo e música possibilita a contagem de histórias incríveis”, enfatiza.

Nesse processo existe o data storytelling, que se for entendido como dados transformados em narrativas, pode ser uma alternativa ao jornalismo. A partir desse preceito, segundo a professora de storytelling da ESPM, não adianta falar de 100 mil pessoas que morreram na Síria ou mesmo nas cifras de mortes aqui no nosso litoral sem dar nome a elas. “Eu não me emociono com ou pelos números, eu me emociono por um indivíduo”, explica. “O número pela matemática tem sua beleza, mas não conta uma história”, finaliza.


Por conta das fortes chuvas que atingiram o litoral brasileiro durante o Carnaval, a Defesa Civil Estadual de São Paulo informou que houve 50 mortes em São Sebastião. Foto: Tiago Queiroz


O storytelling, com seu mote de contar histórias, pode ainda servir como auxiliador no processo de aproximação do público para com destinos turísticos ou, ainda, ajudar na mudança da percepção de determinadas localidades. A Colômbia, com sua campanha de incentivo para plantação de café; a Tailândia, com sua ação intitulada I Hate Thailand; e a Índia, com a iniciativa Incredible !NDIA, são alguns exemplos de países que se uniram ao storytelling para reverter, ou ao menos tentar mudar, a visão internacional sobre seu território no que tange o turismo.

E a música também pode participar desse processo. Títulos como Sweet Home Alabama, do Lynyrd Skynyrd; Sweet Louisiana, de Steven Tyler; Sous Le Ciel de Paris, de Edith Piaf; e Aquele Abraço, de Gilberto Gil, dão embasamento para essa aplicação do storytelling. Porém, a música por si só mudar a imagem de um território, para o fundador da Storytellers Fernando Palácios, é difícil.

Porém, de acordo com ele, pode acontecer de a música ser tão marcante que vira referência de um lugar. E Danúbio Azul, segundo Palácios, é um bom exemplo, pois hoje ela é mais referência de Áustria do que o próprio hino do país, mesmo tendo sido composta como uma valsa de Carnaval. “É possível construir músicas que gerem interesse, curiosidade e percepção de um local”, pontua. “Daí isso colar na cultura e fazer com que as pessoas o consumam em massa já é um desafio muito maior”, pondera. “Ainda assim, acredito que exista uma tendência de destination marketing e place branding, que têm por objetivo construir uma imagem e gerar o interesse de visita a partir do entretenimento”, reflete.

Apesar de ser usada como meio de gerar interesse, curiosidade e percepção de um determinado local, a música por si só não consegue tornar as histórias imortais. Para a consultora Soraia Lima, professora de storytelling e marketing digital da ESPM e USP, é o áudio que pode fazer isso porque ele é mais fácil de ser consumido, tanto na vertente de música quanto na de podcast. “Eu, portanto, mudaria o olhar das músicas para o áudio de maneira geral”, sugere.

Tal opinião não é compartilhada por Palácios, que acredita que sim, a música pode tornar uma história imortal, pois, segundo ele, música e storytelling sempre andaram juntos. O fundador da Storytellers cita, por serem inicialmente cantados, os poemas Ilíada e Odisseia, de Homero, como exemplos. “Música tem esse poder de grudar melhor na cabeça das pessoas, então o casamento entre música e storytelling é algo muito poderoso”, finaliza.​