Vendido como um caminho para liberdade, conexão e interação, segmento de mercado evidencia o movimento da 'pornificação' do individuo
A audiência do site PornHub cresceu em 5,7% durante a pandemia. No recorte brasileiro, o site presenciou um salto de 13,1% nas visitas em março de 2020. Na mesma direção estão endereços online como Stripchat e Câmera Hot, os quais tiveram um aumento considerável no volume de acessos durante o período de isolamento social.
Enquanto o Stripchat atingiu a marca de 120 milhões de visitas em agosto de 2020, o Câmera Hot teve uma ampliação de 300 mil visitantes na primeira quinzena de março do mesmo ano e obteve aumento de aproximadamente 30% no número de clientes. Este é apenas um recorte da indústria de entretenimento adulto, uma fatia do mercado que cresceu globalmente 600% apenas no primeiro semestre de 2020, de acordo com a empresa estadunidense de análise de dados Netskope.
Contudo, atrás de dados mercadologicamente positivos, o setor apresenta uma realidade ainda pouco conhecida. De acordo com a mestra e doutora em comunicação e semiótica Priscila Magossi, pesquisadora acadêmica da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber), a indústria adulta digital é formada por um pequeno oligopólio cartelizado de empresas que operam em sites de pornografia, webcamming e venda de conteúdo erótico. Juntas, essas empresas decidem o rumo da degradação do afeto e da radicalização da sexualidade em escala global.
No entanto, tais deteriorações são anunciadas sob o discurso publicitário como algo que oferece empoderamento feminino, liberdade, conexão e interação. A partir dessa postura, segundo Priscila, as pessoas interessadas em compor essa indústria recebem um documento contratual que as condiciona a cederem os seus direitos autorais, constitucionais e existenciais para trabalharem.
A profissional salienta que este único modelo de contrato oferecido globalmente por esse mercado ainda proíbe a mulher de ajuizar contra a empresa contratante independente dos danos existenciais que, por ventura, venha a sofrer. “Por isso, o aumento do consumo da degradação humana nos sites adultos significa que o imaginário social está sendo reprogramado em larga escala de acordo com os interesses econômicos dos proprietários do oligopólio cartelizado de empresas que controlam este setor em todo o mundo”, evidencia Priscila.
Ainda assim, a indústria do entretenimento adulto continua observando aumento tanto no seu consumo quanto no seu lucro. De acordo com um levantamento feito pelo site Pornô Brasil, um montante total de US$ 3.075,64 é investido nesse mercado, o que acaba gerando um retorno considerável.
Apenas nos Estados Unidos, o setor gera uma receita de US$ 2,84 bilhões por ano enquanto que, globalmente, esse número chega a US$ 4,9 bilhões. Tal investimento faz com que 12% de todos os sites disponíveis na internet seja de pornografia, um montante que, a cada segundo, é consumido por mais de 20 mil usuários.
De acordo com o doutor em antropologia Victor Hugo Barreto, pesquisador do núcleo de estudos em corpos, gêneros e sexualidades (Nusex), o aumento do consumo de pornografia fez com que as pessoas usassem mais os apps de encontros e se expusessem mais nas redes sociais para oferecimento de serviços eróticos e/ou sexuais, como massagens ou programas. “No contexto do isolamento, especificamente, percebo muito mais um movimento de ‘pornificação de si’ nesse grande mercado de atenção que se tornaram as redes sociais e os sites de entretenimento adulto”, observa.
Foi durante o isolamento que, a partir das medidas de contenção do vírus da Covid-19 propagadas pelos órgãos oficiais, como o uso de máscaras e o distanciamento social, a saúde física foi mantida, mas o bem-estar mental acabou sofrendo determinadas consequências.
É aí que, para o sexólogo Paulo Tessarioli, presidente da Associação Brasileira dos Profissionais de Saúde, Educação e Terapia Sexual (Abrasex), as relações virtuais demonstraram ser uma possibilidade de contato entre as pessoas, proporcionando, assim, a manutenção também da saúde mental. “O sexo pegou carona nesse movimento e as relações sexuais no mundo virtual deixaram de ser ficção e passaram a ser uma realidade”, observa.
Antes mesmo de migrar para o ambiente virtual, porém, é preciso que a sociedade de uma maneira geral tenha ciência de que a atividade sexual, para ser exercida de maneira saudável, deve ser regida pelo consentimento, algo que ainda foge do conhecimento das pessoas.
De acordo com o estudo Saúde e Bem Estar Sexual no Mercado Erótico, feita pelo portal Mercado Erótico entre julho e setembro de 2021, 91% dos clientes das 316 empresas participantes da pesquisa assume ter pouco conhecimento de consensualidade sexual.
Segundo a educadora sexual Juliana Santos, editora do portal Mercado Erótico, a cultura sexual brasileira ainda é muito machista e, por isso, mesmo as mulheres com noções de empoderamento se submetem ao ato de agradar o parceiro antes de desenvolver uma percepção completa do seu auto prazer e autocuidado. “Ainda é muito comum que a mulher vá para cama sem vontade de transar apenas para ‘cumprir com sua obrigação de esposa’”, observa. “Isso é lamentável!”, queixa Juliana.
Mesmo existindo esse cenário, a pandemia também mostrou que existe a possibilidade da auto-satisfação sexual, uma saída que gerou ampliação das visitas em sites adultos. Por outro lado, tal cenário também identificou a crescente necessidade pelo prazer imediato.
Não por acaso, o portal Mercado Erótico identificou na pesquisa Saúde e Bem Estar Sexual no Mercado Erótico que houve aumento de 55% nas vendas de itens que visam prolongar ou postergar a ereção masculina e de 90% na demanda de produtos que estimulam a excitação feminina.
Tal cenário comprova, de maneira econômica, uma realidade intrínseca a todo o mercado de entretenimento adulto que consiste em dois tipos. O primeiro, tido como a violência do homem contra a mulher, é aquele exercido por intermédio de máquinas anunciadas como brinquedos interativos. O outro, trazido como violência do homem contra si mesmo, é aquele anunciado como fetiche, algo muito trazido, inclusive, nos conteúdos existentes nos sites de conteúdo adulto.
Segundo a mestra e doutora em comunicação e semiótica Priscila Magossi, pesquisadora acadêmica da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber), tudo o que é vivido no ambiente virtual também reflete nos pensamentos e sentimentos no offline. Por isso, viver essas experiências radicalizadas, polarizadas e extremas em rede significa, para ela, alterar também o rumo do afeto e da sexualidade nas relações cotidianas. “Defender este segmento de mercado, da forma como existe hoje, significa abraçar os porões da tortura”, declara.