O outro lado do k-pop

Ao transformar a forma como se consome cultura, gênero sul-coreano colocou em evidência um fenômeno chamado Cultura de Fãs

O k-pop está assumindo, desde o início dos anos 2000, uma ascendência de popularidade no universo musical. Não por acaso, o Twitter indicou, em um levantamento feito entre janeiro de 2020 e junho de 2021, os 20 países que mais twitaram sobre k-pop na rede social. Nações como Indonésia, Filipinas, Tailândia, Coréia do Sul e EUA figuram entre os cinco primeiros. Brasil, Malásia, México, Japão e Índia completam o top 10.

Já o levantamento K-Pop Around the World, feito pelo Spotify entre janeiro de 2014 e janeiro de 2020, traz os nomes mais consumidos do gênero. BTS, Blackpink, EXO, Twice e Red Velvet estão entre as cinco bandas mais ouvidas na plataforma de streaming.

Com o sucesso global, cria-se a capacidade de influência e transformação do consumo cultural. Nesse aspecto, encontra-se um fenômeno conhecido como cultura de fãs, um cenário vivenciado pelo rock durante seu auge de popularidade nos anos 80 que, hoje, é vivido pelo k-pop de maneira a mostrar lados extremos desse universo.

Comportamentos irracionais que perpetuam o cyberbullyng, perseguição, a censura e o gasto exorbitante de dinheiro em nome de seus ídolos são ocorrências observadas nesse fenômeno. Uma amostra disso foi um financiamento coletivo que arrecadou, em três minutos, R$ 813 mil para customizar a parte externa de um avião para comemorar o então 26º aniversário de Jimin, um dos sete membros do grupo BTS.

Foto: reprodução da internet.


Outro exemplo de comportamento tido como extremo foi o caso de estupro envolvendo o cantor Kris Wu. Na ocasião, fãs tramaram planos para tirá-lo da cadeia. Não por acaso, a China, por meio do Cyberspace Administration of China (CAC), publicou em agosto deste ano um plano de 10 pontos que impede a disseminação de informações prejudiciais em grupos de fãs de celebridades, incluindo fofoca e abuso verbal.

De acordo com a antropóloga Tarsila Luz, o fã é movido principalmente pela paixão e seu objeto de adoração, seja ele um artista, uma série ou livro, é uma fonte de novas experiências e fortes emoções. “Com o k-pop, o dinamismo dos grupos e dos lançamentos constantes de músicas novas acaba alimentando essa necessidade de consumir mais essas emoções e experiências”, explica.

Fila com mais de mil fãs para um dos dois shows que o grupo BTS realizou em 2019, na cidade de São Paulo.  Foto: Celso Tavares.


De outro lado, Tarsila aponta que o fato de os apreciadores de k-pop enxergarem na música uma fuga das coisas ruins em suas vidas é mais uma indicação do por que alguns indivíduos entram para essas comunidades de fãs . “Eu acredito que a organização em fandons tem muito a ver com a forma que consumimos cultura como sociedade hoje em dia”, opina. “Apreciar um artista especifico se torna uma atividade intensa com compromissos, deveres, símbolos e muitas emoções que podem se tornar extremas”, alerta.

É aí que entram os Sasaengs, ou fãs perseguidores de k-pop. São pessoas que, por praticarem atos de perseguição aos idols, são desconsideradas por aqueles que são de fato fãs. Casos como o de uma menina que raspou o cabelo para poder entrar no banheiro masculino e esperar pelos membros do EXO, ou o de uma garota que escreveu uma carta com sangue de menstruação para entregar ao idol, são alguns exemplos de atos feitos pelos Sasaengs.

Para
Helmer Marra, pesquisador do MidiÁsia, a cultura de fãs possui, portanto, várias vertentes, sejam elas de aspectos positivos ou negativos. “Depende de o fã saber até onde se pode ir sem sair do que seria um padrão de realidade e sem atingir o extremismo, que são os Sasaengs”, pondera.

Essa é apenas uma esfera do k-pop. Afinal, o gênero acabou influenciado e, ao mesmo tempo, influenciando seus adoradores a partir do artifício da sexualização, um truque que foi reciclado na estruturação de uma dupla de cantoras russa.

Criada pelo psicólogo infantil Iván Shapavalov em 1999, a t.A.T.u, acrônimo de aita devochka liubit tu devochku (esta garota ama essa garota , em português) foi uma dupla feminina que recriou a sensualidade tão presente no rock dos anos 80. Ao mesmo tempo, ela disputou com boybands em ascensão no início dos anos 2000, como Backstreet Boys e ‘N Sync, em uma tentativa de atrair o público jovem e despertar, nele, a noção de liberdade sexual.

Nesse mesmo caminho se encontram os grupos de k-pop que, em suas produções musicais e audiovisuais, exortam comportamentos sensuais. “A sexualidade no k-pop é uma forma de vender os grupos para o seu público alvo e isso fica ainda mais explicito quando, por exemplo, vemos casos de grupos femininos que, ao terem um inicio de carreira fraco, passam a lançar músicas sensuais e, assim, conseguem aumentar sua popularidade”, explica a antropóloga Tarsila Luz.

Cena do clipe de Vibrato, single do grupo feminino de k-pop Stellar. Foto: reprodução da internet.


Para Tarsila, essa mensagem de liberdade sexual está relacionada a uma intenção de tornar o k-pop um produto mais atraente para os seus consumidores. Segundo ela, com a expansão para públicos estrangeiros, o artifício serve para gerar engajamento com os fãs ocidentais, que estão abertos a conteúdos mais sexuais do que alguns dos países orientais. “Ao mesmo tempo, o uso da sexualidade para se aproximar dos fãs tomou um rumo que mostra uma contradição na sociedade coreana, pois a Coréia do Sul é um país extremamente conservador em que a comunidade LGBTQ+ é muito invisibilizada”, observa.

Além de transformar o comportamento por meio da cultura de fãs e de se utilizar da sensualidade, o k-pop é ainda usado como um meio de suavizar descontentamentos de origem econômica.

Assim como a Índia e países de religião hindu são regidos pelo sistema de castas, a Coréia do Sul é um país baseado em uma estrutura semelhante. Nela existe a simbologia de que a colher de ouro designa famílias ricas; colher de prata equivale às famílias de classe média e colher de barro, às mais pobres.

Tal rigidez com relação à economia das famílias, às consequentes ausências de oportunidades iguais e falta de estabilidade no emprego reforçam esse cenário. Não à toa que, nos dizeres do professor de Estudos Coreanos da Universidade de Londres, Owen Miller, há um sentimento na Coreia do Sul de que ou se é um vencedor ou um perdedor.

Segundo a jornalista e produtora cultural da Highway Star
Laiza Kertscher, o k-pop surgiu com investimento do governo sul-coreano como uma propaganda da estabilidade financeira do país após a crise financeira asiática dos anos 90. “A música do k-pop não costuma abordar questões sociais, ainda que existam aqueles artistas que falem da vida real em seus trabalhos”, esclarece. “As composições do gênero têm um foco maior no público jovem e oferecem a ideia de algo que represente os sonhos e ideias dessas pessoas”, conclui.