Necrofilia pode estar ligada a desenvolvimento psicossexual conturbado

O transtorno parafílico sempre existiu. E, em algumas sociedades, não é considerado crime

Era 1968. O estadunidense Jerry Brudos tinha 29 anos quando cometeu o primeiro assassinato. No seu segundo ato, além de assassinar uma jovem de 18 anos, Brudos realizou atos sexuais com o corpo já inerte inúmeras vezes. Tal iniciativa foi realizada com outras duas vítimas, ambas do sexo feminino com idade entre 22 e 23 anos.

Anos antes, em 1936, Sada Abe, então com 31 anos, tinha relações com o amante Kichizo Ishida, um proprietário de um restaurante no centro de Tóquio, Japão. Em um hotel no centro da cidade foi onde os atos sexuais entre eles ficaram mais agressivos. Depois de enforcar Ishida durante a relação sexual, Sada retirou os genitais do corpo do amante já inerte e, antes de ser capturada e presa, tentou por inúmeras vezes introduzir os órgãos sexuais dentro de si.

Esses dois casos ilustram uma realidade pouco comentada, mas existente na sociedade atual, que é a necrofilia. Considerada por especialistas um comportamento sexual desviante da normalidade por envolver elementos incomuns enquanto ferramentas de excitação sexual, a parafilia se define pela atração sexual por cadáveres.

Supostamente criado em 1850 após o caso envolvendo o então sargento francês François Bertrand, o qual realizou atos sexuais com corpos parisienses, o termo necrofilia foi introduzido na Classificação Internacional das Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS) em sua oitava edição, de 1965.

Nesta época, deu-se início a uma expansão substancial de categorias relacionadas às parafilias no capítulo sobre transtornos mentais. Nele, masoquismo, narcisismo, sadismo, voyeurismo e necrofilia foram listados como termos de inclusão para outros desvios sexuais, como permanece até os dias atuais com a 11ª e mais recente CID, a qual encontra-se em construção.

“Vale lembrar que sexo com cadáveres já não é crime em algumas sociedades. Alguns autores acreditam, inclusive, que a condição estaria dentro do ‘sociologicamente normal’”, ressalta a psiquiatra especialista em sexualidade humana Alessandra Diehl.

Primeiramente é necessário compreender o que é parafilia, termo que engloba a necrofilia. De acordo com a CID, portanto, o distúrbio parafílico é caracterizado pelo persistente e intenso padrão de atípica excitação sexual manifestado pelos pensamentos sexuais, fantasias, desejos ou comportamentos em que o foco envolve outros cuja idade ou status os tornam relutantes ou incapazes de consentir às ações mediadas por uma pessoa que se encontra marcadamente angustiada.

A partir disso, torna-se necessário esclarecer quando a condição necrófila surge no indivíduo. Para a psiquiatra da clínica de tratamento em saúde mental Holiste, Paula Dione, esse é um ponto de difícil precisão, pois as informações disponíveis para estudo ainda são poucas e controversas. “Aparentemente, a manifestação de transtornos de preferência sexual está ligada a interferências no processo de desenvolvimento da personalidade e da sexualidade do indivíduo, o que leva a crer que o transtorno seria adquirido ao longo da vida”, sugere.

Todo o transtorno, seja ele parafílico ou não, tem sua origem e seu despertar no comportamento de cada indivíduo. Os psiquiatras Jonathan P. Rosman e Phillip J. Resnick se uniram para tentar identificar as causas da necrofilia e o resultado disso foi descrito no estudo conjunto “Sexual Attraction to Corpses: A Psychiatric Review of Necrophilia”, o qual foi publicado em 1989. A partir da análise, os profissionais concluíram que o motivo mais comum para se realizar o ato necrófilo é a possessão de um parceiro que não resiste e não rejeita.

Para o psicólogo especialista em saúde sexual Ralmer Nochimówski Rigoletto, porém, a origem do transtorno é um tanto mais profunda. Segundo ele, questões como rejeição, proibições exacerbadas, controle excessivo e desvalorização do indivíduo nas diversas fases do desenvolvimento psicossexual sempre desembocam em tentativas do psiquismo para diferentes caminhos de realização e vivência do desejo e da sexualidade para a obtenção de um prazer até então proibido.

“Neste caso, a questão vai além do ‘possuir um parceiro que não resiste ou não rejeita’. Trata-se de estar ou sentir-se apto para lidar com as diferentes situações que podem surgir durante uma relação sexual com outra pessoa viva”, explica o psicólogo.

Por se tratar de um distúrbio que envolve o âmbito sexual, a necrofilia atinge indivíduos em idades pós-puberes. De acordo com a especialista em sexualidade humana Alessandra Diehl, portanto, a condição começa na adolescência e início da vida adulta, atingindo o seu pico em adultos. “É como se o desejo sexual tomasse um caminho ‘alternativo’”, comenta.

Apesar de começar nas idades juvenil e adulta, a condição necrófila também pode ser observada em idosos. Nesses casos, se o indivíduo não tem histórico desse tipo de iniciativa, Alessandra salienta que a causa para tal conduta é orgânica, principalmente de origem cerebral, como processos demenciais e tumores.

De toda a forma, observa-se que a parafilia necrófila pode estar presente em todas as fases da vida desde a adolescência. Partindo disso, o que entra em voga é conhecer a frequência em que o distúrbio se pronuncia nos diferentes gêneros sexuais. Segundo a psiquiatra da clínica de tratamento em saúde mental Holiste, Paula Dione, a literatura informa que o comportamento necrófilo é mais comum em homens.

“Esse fato pode estar associado à natureza das patologias que predispõem à necrofilia, assim como às questões socioculturais”, explica.

E se tratando do homem como principal portador do comportamento necrófilo, o psicólogo, sexólogo e psicodramatista Sebastião Nascimento afirma que, no momento do ato libidinoso, o indivíduo apresenta preferências por corpos femininos recém-falecidos.

No entanto, Nochimówski Rigoletto ressalta que existem situações em que o transtorno parafílico é muito intenso e, assim, o corpo perde o significado de “pessoa”. “Desta vez, o cadáver passa a ser interpretado como um objeto de excitação e prazer sexual, onde o gênero não é um aspecto que possa interferir na escolha para a obtenção do prazer”, explica o psicólogo especialista em saúde sexual.

Necrofilia na infância

Apesar de ser um tema delicado, a necrofilia é um assunto que permeia o universo das artes. O artista surrealista Salvador Dalí não apenas retratava o tema em suas obras, como também assumiu publicamente seu interesse por cadáveres. No mundo das produções cinematográficas, situações semelhantes se repetem. Contudo, esse universo atinge também o público infantil.

Os psiquiatras Jonathan P. Rosman e Phillip J. Resnick, por sinal, acreditam que o conto original de “A Bela Adormecida” encarna a fantasia ao redor da necrofilia, uma vez que um cadáver retorna à vida. No entanto, o psicólogo, sexólogo e psicodramatista Sebastião Nascimento vai na contramão dessa crença e afirma que, na fantasia da criança, não se trata da morte em si e sim do adormecer. “O que seria adormecer? É como se a pessoa estivesse fora de si, como se estivesse em outro mundo e, através do contato de algo muito especial, ela retorna”, comenta.

De outro lado, o psicólogo especialista em saúde sexual Ralmer Nochimówski Rigoletto levanta a história de “Branca de Neve e Os Sete Anões” como referência à necrofilia. “No conto, o que ocorre é sim a morte por envenenamento. Ela está sendo velada quando o jovem príncipe abre o esquife e a beija”, comenta.

Imagem: Reprodução da InternetUma vez que as crianças foram inseridas em um universo de tema tão delicado como a morte e são a principal vítima de outro sintoma parafílico que é a pedofilia, a distinção entre os dois distúrbios, apesar de parecer clara, merece maior esclarecimento. Afinal, os praticantes de ambas parafilias têm consciência de seus atos.

Na visão da sexologia, de um lado está a necrofilia, em que a pessoa procura um cenário que lhe facilita para executar o ato. De outro está o transtorno pedofílico, em que o ato não é feito por impulso, pois o praticante cria um ambiente para chegar até a vítima. “Então o que mais diferencia a esses indivíduos parafílicos é, primeira e obviamente, os seus objetos de desejo e, em seguida, a forma como essa relação com o objeto se estabelece”, pontua Nochimówski Rigoletto.

Contudo, não são apenas os transtornos parafílicos que têm subdivisões. A própria necrofilia compreende diferentes tipos que podem ser presenciados no comportamento dos indivíduos livres na sociedade. Ao todo, o distúrbio necrófilo se divide em três categorias, sendo a comum aquela em que ocorre o ato sexual com pessoas mortas; a homicida como sendo o responsável por matar e, em seguida, fazer sexo com o corpo; e a fantasiosa, em que o ato não é consumado, mas persiste no imaginário do necrófilo.

Por serem tipos diferentes de comportamentos necrófilos, a lei promove iniciativas distintas acerca de cada vertente. Para o advogado criminalista especializado em crimes sexuais Denis Caramigo Ventura a norma penal que será aplicada sobre o indivíduo do primeiro tipo necrófilo é a do Artigo 212 do Código Penal, que configura o ato de vilipêndio de cadáver e prescreve detenção de um a três anos e multa.

Já no caso da necrofilia homicida, o indivíduo responderia, em tese, por homicídio e vilipêndio de cadáver, abrangendo os Artigos 121 e 212 do Código Penal. Por fim, a vertente fantasiosa, em se tratando de pensamentos envolvendo relações sexuais com cadáver, não possui conduta punível. “Importante ressaltar que não existe o crime de necrofilia”, destaca Ventura.

Em 2013, duas famílias paranaenses tiveram contato com o tipo comum de necrofilia. Naquele ano, elas tiveram de sepultar, pela segunda vez, parentes já mortos porque os túmulos foram violados e os corpos retirados dos caixões por necrófilos. Nesses casos, uma vez que os réus são condenados, Ventura afirma ser possível um valor a título indenizatório já em sede de sentença arbitrado pelo juízo, conforme preconiza o Artigo 387, inciso IV do Código de Processo Penal.

“Por outro lado, é possível demandar civilmente contra o município, quando o cemitério for municipal, ou, quando for o caso, contra o cemitério particular”, pondera.

Para que essas situações não ocorram, a ação necessária a ser feita é a prevenção da necrofilia, algo que o psicólogo especialista em saúde sexual Ralmer Nochimówski Rigoletto acredita ser possível através da correta e adequada educação para uma sexualidade saudável, a qual deve ser oferecida desde a infância e de acordo com o nível intelectual e psicológico da criança.

Imagem: Reprodução da InternetSe a prevenção não funcionar, o próximo passo a ser tomado é o tratamento dos casos de necrofilia. Contudo, a psiquiatra especialista em sexualidade humana Alessandra Diehl ressalta que as Diretrizes da Federação Mundial das Sociedades de Psiquiatria Biológica para o tratamento biológico de parafilias mostram que, apesar de haver alguns relatos de casos de redução de alguns comportamentos sexuais, os medicamentos psicotrópicos ilustraram evidências muito fracas na eficácia do tratamento para comportamentos parafílicos de um modo geral. Essa constatação, segundo Alessandra, também se aplica para a necrofilia.

Para Nochimówski Rigoletto, porém, a terapia do necrófilo, assim como da maioria dos transtornos parafílicos, envolve a psicoterapia com enfoque na sexualidade. “Por meio dela, se busca o entendimento da relação do indivíduo com seu objeto de desejo, a história desse desejo e a ressignificação dessa relação”, explica o especialista.

Na visão do psicólogo, sexólogo e psicodramatista Sebastião Nascimento, porém, a cura para esses casos está centrada na castração química. Esse método, inclusive, já foi cogitado isso no Brasil. O problema, segundo ele, são os efeitos colaterais dos medicamentos para essa castração. “A necrofilia sempre existiu e não é algo tão incomum. Como é um assunto que não é muito especulado, às vezes passa despercebido”, alerta.