Marcela Freitas foi condenada por alienação parental em dezembro de 2018 e não pôde mais ter contato com os filhos
Marcela Freitas*, de Vazante, cidade do interior de Minas Gerais, perdeu a guarda dos dois filhos para o seu pai, avô das crianças, por manifestar a intenção de mudar-se com os filhos de Vazante para Caeté, cidade também mineira.
“Eu fui acusada de alienação parental por estar protegendo os meus filhos dos avós. E eu perdi a guarda por também estar me mudando de cidade para trabalhar. As pessoas que ficaram com a guarda não têm aptidão nenhuma para ficar com eles, porque não criaram nem os filhos, quem dirá os netos. São agressores e existem medidas protetivas contra eles. O avô é acusado de ser mandante de um assassinato, então não tem aptidão alguma para cuidar de netos.” relata Marcela.

Sentença apresenta a intenção de mudança como causa para perda da guarda
O Código Civil brasileiro, no artigo 1.638, determina que a decisão judicial poderá extinguir o poder familiar somente de pai ou mãe que praticar homicídio, feminicídio, lesão corporal de natureza grave, ou estupro contra filho, neto ou contra o outro que tenha o mesmo poder familiar sobre a criança. Essa sanção também se aplica para aqueles que deixam o filho em abandono, praticam ações contrárias à moral e aos bons costumes ou entregam o filho de forma irregular a terceiros para fins de adoção.
Entretanto, a lei da alienação parental (Lei 12.318/2010) permite que uma decisão judicial remova o poder familiar por razões subjetivas, como a mudança de endereço. Deste modo, a lei fere o código civil e dá ao estado o direito e o poder de fazer o que teoricamente coíbe: afastar um dos pais.
Desde maio de 2016, Marcela tem uma medida protetiva contra o pai por ter sido agredida por ele. Marcela também fez denúncias contra o pai por abusos praticados por ele contra ela mesma na infância. A Justiça de Minas Gerais removeu dela a guarda de seus dois filhos por, como consta na sentença, “falar mal” de seu agressor e abusador, que é o próprio pai, e por ter a intenção de mudar-se de cidade. O inciso VII da Lei 12.318/2010 tipifica como alienação parental “mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando dificultar a convivência com os avós”. Contudo, ela sequer havia se mudado quando perdeu a guarda.
O procurador Bertoldo Filho, coordenador de Defesa do Direito de Família do Ministério Público de Minas Gerais, opina que a “mudança abusiva de endereço” mencionada na lei “é um critério muito frágil e que fica deixado à apreciação subjetiva do juiz”. Para ele, a sanção de remoção da autoridade parental é dar ao estado o poder e o direito de alienar um dos pais “Significa uma intervenção indevida do estado a partir de fundamentos pouco científicos”.
As crianças, sendo, Maria, de cinco anos, e José, de 10 anos, eram criadas pela mãe desde o nascimento, mas a partir da alteração de guarda têm sido impedidas de ter contato com a mãe. “Quando eu perdi a guarda dos meus filhos fiquei quatro meses fazendo vários pedidos de visita e o juiz negava todos, até que ele me deu o direito de visita uma vez por mês. Mas eu vou lá para ver os meus filhos e os avós não querem deixar. Eu pedi ajuda à promotoria, ao ministério público, ao conselho tutelar, fui à polícia militar mesmo eu estando com a decisão que me dá o direto às minhas visitas”, queixa-se a mãe.
O uso de laudos psicológicos para condenar
O parecer feito pela psicóloga do CREAS - Centro de Referência Especializado da Assistência Social, Débora Garcia Silva, informa que Marcela apresenta ressentimentos em relação aos seus pais, “bem como alienação parental, que poderá ocasionar nas crianças prejuízos emocionais. Em respeito à fase do desenvolvimento e formação de personalidade das crianças, é de extrema importância os laços afetivos para a construção do sujeito”.
Para que o laço com os avós fosse então preservado, a vara de família condenou os filhos à ausência da mãe. Débora Garcia Silva foi denunciada ao Conselho Federal de Psicologia por ter feito relatórios ouvindo apenas os avós das crianças, desrespeitando as normas do Conselho.
“A síndrome da alienação parental não é um conceito da psicologia e nem foi reconhecida até o momento pela Associação Americana de Psiquiatria ou pela OMS, que são as instituições que organizam os manuais diagnósticos. Patologização significa que um problema não médico passa a ser considerado como problema médico, o que gera consequências negativas porque se identifica como transtorno o que não é de fato um transtorno. Isso ocorreu com a síndrome da alienação parental”, explica Iolete Ribeiro, representante do Conselho Federal de Psicologia no Conselho Nacional da Criança e do Adolescente.

Na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde não é encontrado nada sobre “alienação parental”. O resultado da pesquisa diz: “sem resultados encontrados!”
Em 2018 o CONANDA emitiu uma Nota Pública para alertar o Congresso Nacional de que o conceito de ‘alienação parental’ não está fundamentado em estudos científicos. “Para que uma teoria seja reconhecida como científica ela precisa estar fundamentada em evidências comprovadas a partir de pesquisas que seguem métodos reconhecidos pela comunidade. Se não existe fundamentação não é científico. É somente uma opinião!”, explica Iolete. Ainda assim, o artigo 5º da lei determina que relatórios psicológicos diagnosticando a síndrome, que não existe, são usados como prova base em tribunais para condenar alguém por alienação parental.

O mesmo artigo também dispõe que o profissional deverá “diagnosticar atos”. Mas é possível diagnosticar atos? “Realmente há um termo equivocado, pois mesmo que esteja presente no texto da lei, não existe meios de ‘diagnosticar atos’. ‘Diagnosticar’ provém do campo da saúde, então é um pouco equivocado dizer que se podem ‘diagnosticar atos’” complementa Eduardo Ponte Brandão, psicólogo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e professor do Curso de especialização de psicanálise com crianças do Serviço de Psicanálise em Atenção à Infância e à Família.
A solução do conflito familiar
Bertoldo Filho, Coordenador de Defesa do Direito de Família do MP-MG acredita que a lei não faz falta no ordenamento jurídico. “Existem tantos outros métodos de solução de conflito, que essa questão da alienação parental possibilita mais o direito de intervir do que o acerto. Eu sou favorável à revogação se a lei não puder ser alterada para melhorar. Não acredito que ela supere os métodos já existentes como o da guarda compartilhada e o da mediação. Não tem vantagem nenhuma!”, opina o procurador. A mediação para solução do conflito foi vetada da lei pelo então presidente Lula. Assim, as únicas sanções possíveis são a alteração da guarda, suspensão do poder familiar, multa e tratamento psicológico. Sanar o conflito entre os adultos da família não é uma opção para a LAP.
O processo de alienação parental é civil, não criminal. Caso exista uma alegação de crime contra a criança na esfera criminal, o processo civil de alienação parental é concluído muito antes e a reversão ou não da guarda é decidida independente do que acontecer com o criminal, possibilitando a reversão de guarda para um pai que tenha cometido crime contra a criança antes de ele ter sido julgado na vara criminal. O artigo 4º da lei dispõe que o processo de alienação parental terá tramitação prioritária e o juiz determinará com urgência as medidas provisórias.
Para o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, Rodrigo Da Cunha, há um uso abusivo da lei: “Essa banalização é a mesma coisa que acontece com a Lei Maria da Penha: As mulheres dizem que teve violência doméstica e às vezes foi uma simples discussão. Assim como há abuso da lei quando a pessoa é acusada de abuso sexual contra uma criança e a defesa imediata é dizer que não é abuso. Isso é alienação parental! Essa banalização é um risco que se corre com a popularização da lei, fazendo com que as pessoas comecem a interpretar tudo como alienação parental”, comenta.
Existem três projetos para revogar a lei: o Projeto de Lei do Senado 498/2018, que teve parecer contrário da relatora, a senadora Leila do Vôlei; o PL 6371/2019, da deputada Iracema Portella (PP-PI), que ainda não teve parecer; e uma Ação Direta de inconstitucionalidade (ADI/6273) foi requerida ao Supremo Tribunal Federal em novembro de 2019 pela Associação dos Advogados Pela Igualdade de Gênero. A relatora é a Ministra Rosa Weber.
O IBDFAM se posiciona radicalmente contra a revogação da lei. Rodrigo da Cunha, presidente do instituto, opina que “a lei tem uma função simbólica muito maior e muito mais importante do que seus efeitos práticos jurídicos”. Para ele, o benefício trazido pela lei seria a tipificação do conceito, que leva pais a questionarem se estão praticando alienação parental. “O resumo da alienação parental é: não quis ficar comigo, agora vai comer o pão que o diabo amassou. Nem seus filhos vão te querer! Foi o que a Medeia fez quando Jason ficou com a princesa de Corinto. Ou seja, isso vem lá de trás”, afirma o advogado.
Hoje, Marcela não tem contato algum com os filhos, sequer por telefone. À medida que se aproxima a audiência de guarda definitiva, a mãe se preocupa com o risco de nunca mais ver os filhos e com a saúde da menina Sophia. Ela conta que os avós não têm dado continuidade ao acompanhamento médico que a criança fazia quando vivia com a mãe. “A lei da alienação parental, a meu ver, obriga a criança a adoecer. É uma lei que tem sido abusiva no Brasil, que tem beneficiado pedófilos, agressores, estupradores, pessoas que não têm aptidão alguma para criar uma criança”, desabafa Marcela.
* Os nomes utilizados são fictícios, a fim de preservar a identidade dos envolvidos.